quarta-feira, 29 de julho de 2009

Era uma vez um trem

Era uma vez um trem que me levava todos os dias para a escola. Esse trem com locomotiva a vapor e vagões de passageiros de madeira-igualzinho àqueles que costumamos ver em filmes de John Ford, perseguidos por índios em fúria - foi um dia a Companhia Douradense de Estradas de Ferro e depois se tornou um ramal da Cia Paulista de Estradas de Ferro que ligava minha pequena cidade natal-Trabiju-SP-a Dourado-SP.

Nos anos 60, viajei diariamente nesse trem por 03 anos para frequentar a Escola Normal(curso equivalente ao curso médio que na época formava os professores primários) em Dourado-SP.

Como apenas haviam dois trens para Dourado, o de ida as 7 horas da manhã e o de volta, ás 20 horas, minha mãe preparava uma marmita com meu almoço que eu levava e aquecia para comer na hora do almoço.

O detalhe é que nesses três anos morei da estação ferroviária onde meu pai, que era ferroviário, conseguiu com as autoridades da ferrovia, um pequeno quarto com banheiro onde colocamos uma cama, para que eu pudesse pernoitar quando preciso e uma mesa para que eu pudesse estudar e redigir minhas tarefas escolares.

Como a escola era apenas meio período convivia muito com o pessoal da estação e até aprendi a utilizar o telégrafo. Quando partia o último trem à 20 horas, a estação fechava eu ficava sozinho naquele prédio enorme, apenas contando com a presença distante de um vigia das instalações que de vez em quando se animava a conversar para espantar as assombrações, cujas histórias, confesso, me causavam, ainda, calafrios naquela solidão dos trilhos e barracões sem viva alma!

Felizmente a ferrovia durou até que eu terminasse meu curso, pois logo depois os trens pararam de circular e o apito da Maria Fumaça se calou para sempre!

quinta-feira, 23 de julho de 2009

O trem na memória...de Rubem Alves(02)

"Eu vivia na roça. Na roça todos os trem eram de pau. Pau mesmo, e não madeira. Madeira é palavra de gente da cidade. Houve a idade da pedra lascada, a idade da pedra polida, a idade dos metais. Por que não a idade do pau? Pois devia.

Dou testemunho: na roça não era nem pedra e nem metal: era pau.Na roça pau era, de fato, pau pra toda obra. Talvez essa seja a origem dessa expressão. A casa era de pau-a-pique.O fogo se fazia com paus de lenha. Tudo nos carro de boi era feito de pau (menos os bois.).

A água se bebia numa vasilha de pau chamada cuia. As cercas se faziam com um pau oco chamado bambu. E até os canos se faziam com um pau chamado embaúba. Panela, lamparina, pratos e canecas - coisas de metal eram seres de um outro mundo.

Aí aconteceu aquele dia quando o meu pai nos disse que íamos nos mudar para Lambari. E pra me explicar como era Lambari ele disse apenas: Lá tem trem-de-ferro. E foi assim que, num único dia eu dei um salto de milhares de anos.

Saí do mundo dos trem-de-pau e me mudei para o mundo do trem-de-ferro. Saí da roça. Me mudei para a civilização.(.)"

Rubem Alves

Quem quiser ler a crônica TREM integralmente é só clicar aqui

domingo, 19 de julho de 2009

O apito do trem mudou uma vida

A história abaixo foi gentilmente enviada por um leitor do blog, que garante que ela é verdadeira. Uma bela e interessante história de amor. (Antonio Morales)

por Cleyson Dellcorso

Uma imagem dos tempos de criança que não sai de minha memória é a das histórias ouvidas ao pé do fogão a lenha na casa de um tio no sul de Minas Gerais. Passaram-se muitos anos, mas uma das minhas preferidas ainda está viva em mim, tanto que quando penso no “causo” ainda sinto o aroma do café preto passado no coador de pano e do bolo quentinho de fubá.

Não era uma daquelas tantas historias de fantasmas. Esta em particular, tinha nome e sobrenome e alguns personagens moraram até há pouco nas proximidades.

A moça bonita, de casamento marcado com um ferroviário que morava em outra cidade resolveu terminar o relacionamento, afinal não tinha certeza se gostava o suficiente dele para uma vida a dois e talvez até pudesse encontrar um partido melhor, pois além de feio era pobre.

Após muito refletir, resolveu escrever uma carta terminando o noivado e para mostrar sinceridade contou com pormenores todos os seus sentimentos: que ele era feio e sem futuro e, ela bonita e que merecia alguém que lhe desse uma condição melhor de vida, que talvez até a levasse passear na Capital e não apenas entre duas estações e ainda de carona na locomotiva que era terrivelmente quente e cheirava a diesel; sem contar que da ultima vez que saíram a passeio voltara com graxa até na fita branca que usava nos cabelos negros.

Como a cerimônia do casamento seria somente no civil, não haveria muito alarde em terminar com tudo, apenas saberiam do ocorrido os poucos parentes próximos. Colocou a carta no correio utilizando um envelope florido e perfumado de sua coleção e aguardou uma resposta que nunca chegou.

Pensou até que seu ex-noivo ficara tão magoado que resolvera não responder, afinal havia escrito todos os motivos que a levaram a romper o noivado.Certa tarde estava sentada na varanda de sua casa, pensando que se não houvesse enviado aquela carta estaria casada no próximo final de semana, quando ouviu o apito do trem.

Um apito diferente do usual que só era ouvido quando seu ex-noivo era o maquinista, uma espécie de código entre eles. Ficou lívida. Estaria ele vindo pessoalmente para resolver a situação? Será que ele faria uma cena de ciúmes e atiraria nela com a velha garrucha que costumava usar sob o uniforme?

Enquanto pensava em tudo isto viu o ex-noivo acompanhado de toda a família virar a esquina de sua casa. Pensou consigo: O tempo vai fechar....O ex-noivo se aproximou, beijou-a no rosto como sempre fazia e perguntou sobre os preparativos do casamento.

A carta se extraviou, ela deduziu rapidamente.A presença de todas aquelas pessoas intimidou-a e não teve coragem de levar seu plano adiante. Seus pais certamente achariam uma maneira de contornar a situação e explicar que o casamento fora marcado novamente na mesma data e horário, afinal o numero de parentes não chegava a uma dezena.

Casaram-se. Viajaram para a cidade do noivo e passaram a primeira noite no velho Hotel da Estação, “o maior, o mais confortável” e único da cidade.O marido havia alugado uma pequena casa no fim da rua de cima, uma casinha branca com flores nas janelas de onde se avistava boa parte da região.

Numa manha de sábado, haviam passado mais de 3 meses do casamento, o casal estava regando as flores na varanda quando ela viu um funcionário da estrada de ferro vir em direção a eles, trazendo na mão um envelope florido que ela tão bem conhecia.

Sentiu seu sangue todo ir para a cabeça, a seguir uma forte tontura e o mundo girando, até que caiu desacordada.A carta extraviada que punha fim ao noivado chegara as mãos de seu quase ex-noivo e agora talvez seu ex-marido.

Aquela mesma onde ela escrevera que ele era feio e pobre e que nunca poderia ser feliz ao lado dele e que por ser jovem e bonita certamente haveria dezenas de melhores pretendentes na região. Isto alguns meses após o casamento .

Foi uma situação constrangedora onde até o velho Monsenhor teve que intervir e que só se resolveu depois que a gravidez se manifestou, porém só voltaram a se falar a caminho da maternidade, mais de 8 meses depois do ocorrido.

A última noticia que tenho deles é que viveram juntos por décadas e tiveram muitos filhos.

Ontem contei este caso para meu neto que ouviu com muita atenção e após pensar um pouco perguntou: Vovô, não seria mais fácil ela ter enviado um e-mail? Um torpedo?

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Tios na varanda...e o coração lá!


Era uma vez um jovem adolescente que deixou a vida em uma pequena cidade e se mudou para a cidade grande!

Essa é uma história muito comum por esse mundo afora. Porém o que distingue uma história da outra são os pequenos detalhes e as circunstâncias. Ocorre que essa mudança foi provocada pela extinção de ramais ferroviários no interior do Estado de São Paulo já na década de 60.

Lá estava eu naquela janela de trem, em um ano qualquer da década de 60, acenando para meus tios na varanda quando o trem que logo não iria mais existir, passou me levando e à minha família para outro lugar.

E lá estavam meus tios, como na bela música de Nelson Angelo, na voz de Milton Nascimento Fazenda, acenando e se despedindo:


Tinha sabiá, tinha laranjeira
Tinha manga-rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida

Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá

Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá


Coração apertado, lágrimas subindo aos olhos e a vontade de ficar...mas o trem seguiu em frente por aqueles trilhos que conduziram tanta gente para outros destinos e que logo mais seriam arrancados para alimentar alguma fornalha onde seriam inapelavelmente transformados à semelhança de minha vida.

terça-feira, 14 de julho de 2009

O trem na memória...de Rubem Alves

Sem querer virei personagem de uma das crônicas de Rubem Alves. Eu e todos os seus alunos da FAFI-Faculdade de Filosofia Ciências E Letras de Rio Claro, nos anos 60. Abaixo trecho de sua crônica “ Não é Próprio falar sobre alunos...” que pode ser lida integralmente aqui
Antonio Morales

“Por vários anos eu viajei diariamente de trem, de Campinas para Rio Claro, no Estado de São Paulo, onde eu era professor na antiga Faculdade de Filosofia. No mesmo vagão viajavam também muitos professores a caminho das escolas onde trabalhavam. Iam juntos, alegres e falantes...
Por anos escutei o que falavam. Falavam sempre sobre as escolas. Era ao redor delas que giravam os seus universos.Falavam sobre diretores, colegas, salários, reuniões, relatórios, férias, programas, provas.
Mas nunca, nunca mesmo, eu os ouvi falar sobre os seus alunos. Parece que nos universos em que viviam não havia alunos, embora houvesse escolas. Se não falavam sobre alunos é porque os alunos não tinham importância.”

domingo, 12 de julho de 2009

Os trens na música 01




A música brasileira está povoada de músicas e letras de músicas onde os trens são mencionados.
E, algumas delas o trem, estações, trilhos e outros aspectos do cenário ferroviário são os principais personagens ou ocupam lugar de destaque. Este post inaugura uma série com o mesmo título.

Há, particularizando um pouco mais, aquelas músicas que me lançam para algum lugar do meu próprio passado, dada a similaridade da descrição com minhas vivências pessoais. Uma delas é Encontro e Despedidas, de Milton Nascimento e Fernando Brandt, que pode ser ouvida clicando aqui .

Inúmeras vezes desde menino estive
em estações ferroviárias onde:

Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega prá ficar
Tem gente que vai
Prá nunca mais...

Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir...

sábado, 11 de julho de 2009

Trens, tecnologia e cacoetes religiosos


A propósito de uma conversa sobre trens de hoje e antanho com meu amigo Juvenal Alvarenga, estávamos nos esclarecendo sobre o tal de SELETIVO, que nada mais é que um sistema de controle do tráfego de trens que hoje se faz com o apoio das novas tecnologias e o tal lacre eletrônico das locomotivas.

E aí o Juvenal saiu com o “causo” abaixo, cujos fatos ocorreram segundo ele por volta de 1955.

Antonio Morales


Trens, tecnologia e cacoetes religiosos

Esse papo de TRENS vai longe… …O “SELETIVO” era e talvez continue sendo um dispositivo de controle para que os trens não transitem simultaneamente num mesmo par de trilhos. . Nos tempos do meu amigo Ferreirinha da Noroeste essa vilância não tinha nada de “lacre eletrônico”.
Os computadores mal estariam sendo gestados no silêncio esperto da cabeça dos cientistas. O controle era feito na base do papel, lápis, gráficos, régua e transferidor. Um dia fui visitar o Ferreirinha na escala noturna do seu serviço e fiquei maravilhado com a destreza com que ele exercicia a vigilância dos trens no vai-e-vem entre as estações.

Pilotando sua mesa de engenheiro tipo cavalete o Ferreirinha – moreno, febril e ágil – de boné quebra luz sobre os olhos e o lápis preso na orelha assumia ares de anjo da guarda retendo ou liberando pelo telefone as composisões entre as estações. Um trem só partia com sua órdem expressa, depois de verificar que os trilhos estavam desimpedidos.

Isso era registrado com um vigoroso traço sobre o grande mapa da malha ferroviaria previamente desenhada e disposto sobre sua mesa de trabalho. No final de cada turno eram tantos os riscos e rabiscos que o gráfico tinha que ser trocado por outro novinho em folha.

Quando o trem paria de uma estação o fato era comicado ao “Seletivo” por telefone e o Ferreirinha fazia um círculo de onde aconteceu a partida. A seguir riscava na malha o percurso até a cidade próxima que era por sua vez assinalada da mesma forma. E assim sucessivamente.

Não tinha erro. Nenhuma outra composição poderia usar aquele percurso nem para tirar o pai da forca. Se isso acontecesse era trombada na certa. Ou um empurrão pela retaguarda de uma compoição mais lenta.

Ferreirinha foi meu colega de quarto na pensão da Dona Nenzinha. Ou seria outro o seu nome.? Foram tantos os hoteis, pensões, vagas e hospedarias onde reposuei meu corpo cansado que me dou ao direito de pequenas confusões onomásticas. Fazíamos parte, eu e ele, dos hóspedes comportados que a senhoria reunia numa parte seleta da casa.

Longe dos jogares de baralho, dos notívagos, dos cervejeiros e dos zoneiros com sua vozearia usual. Éramos a elite da escória. Estudantes, na sua maioria, mantidos pelas mesadas familiares que precisavam fazer jus aos trocados recebidos sem o labor insano. Ou, então, empregados como o Ferreirinha que precisam manter-se solerte para a próxima jornada de trabalho. Nada de vacilos boemios.

Lembro-me do Fereirinha por vários motivos, inclusive pelo bom amigo que era. E, também, por um cacoete religioso que desenvolveu – quem sabe – sem ele mesmo perceber.
A certa altura de seus solitários dias ganhou uma correntinha benta (como era de costume) e começou a homenagear o santo com um beijinho de vez em quando. Creio que de início os beijinhos eram ocasionais e esporádicos Mas sistemático como era, resolveu por ódem naquela devoção.

Passou a beijar de hora em hora, sem muito rigor matemático. Aos poucos, porém, sua religiosidade achou que era pouco e os beijos foram se adensando no correr do dia. Era raro o momento em que o Ferreira não estava com a medalhinha rente aos lábos para o exercíciodo beija-beija. .

De resto todos sabemos que as devoções do catolicismo são repetiticas e cronometradas : – as tres aves-marias, as ladaínhas, os terços… as vésperas, o ângelus…

Com seus beijos castos o Ferreirinha parecia seguir esses ritus da religião. Porém para gerar mais merecimentos deviam ocorrer cada vez mais… e mais vezes.

Nessa aritmética desvairada o meu bom amigo deve ter perdido o controle de sua devoção. O que valia não era tanto a periodicidade, mas sim a quantidade de beijos.

Uma avalanche. Quanto tocava a medalhinha com a mão, alí mesmo, tão perto no seu pescoço, lembrava-se do compromisso e com a efígie colada aos lábios descontava os beijos atrasados. Era um tuch-tuch-tuch, sonoro, solerte e incontável. Deixara de contar há muito tempo. Passara a calcular os beijos por tempo de duração do exercício piedoso.

Os períodos de repouso eram raros… bastava lembrar-se que estava em desvantagem na sua reverência que lá vinha um beija-beija frenético. Não se ocultava, não se omitia, não se escondia… era tudo às claras.

Essa passou a ser a sua marca. Pelo menos no crivo da minha observação. Pode ser até que exagero por um desses desmazelos com que o tempo guarda as lembranças. Depois nos separamos, ao comando aleatório dos caprichos do destino.


E o velhoamigo deixou da habitar minhas memórias, de onde hoje o ressuscitei para este átimo de saudades. O que a vida terá feito do Ferreirinha do Seletivo da Noroeste do Brasil, com seu beija-beija alucinado? Por onde andará o Ferreirinha?

Se vivo for se lembrará de mim como me lembro dele nesta tarde fria e silente na contemplação das águas calmas de Avaré? Quem saberá?

Juvenal Alvarenga Jr.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Literatura de viagem...em trens!

Este post foi publicado anteriormente no blog Gato Preto.

Tudo a ver com o Trens da vida. Muito pertinente e interessante. Sua autora, consultada, gentilmente, autorizou sua reprodução aqui.


por Leila Lampe


Sou fascinada por trilhos e trens, e certa vez um amigo deu esta dica de leitura:O Grande Bazar Ferroviário - de trem pela Ásia(Objetiva).

O Grande Bazar… é um passeio delicioso! Conduzido pelos elegantes vagões do Expresso Oriente, ou pelos vagarosos trens indianos, a narrativa é pontuada por várias situações inusitadas e observações sobre os países em que o autor perpassa, como por exemplo o Vietnã, onde as marcas deixadas pela guerra contra os Estados Unidos ainda eram recentes.

Publicado originalmente em 1975, o escritor americanoPaul Theroux parte de Londres, segue pela Itália, pela antiga Iugoslávia e Bulgária até a Turquia. Atravessa o Irã, Afeganistão e Paquistão até chegar à Índia. Adentra o Extremo Oriente pela Birmânia e passa pela Tailândia, Malásia, Cingapura, Camboja e Vietnã. Viaja com os trens-bala do Japão e o final de sua jornada acontece no interminável trajeto a bordo do mítico Expresso Transiberiano, cruzando as paisagens frias e desoladas do interior dos países que faziam parte da União Soviética.

Logo no começo do livro o autor revela: “Eu procurava trens; encontrei passageiros”. Famoso por seus relatos de viagem, Theroux não é um viajante de folhetos de agência, com os clichês e estereótipos de um turista. É um observador na tradição dos grandes escritores-viajantes.

Deixo aqui um trecho do livro:

desde criança, quando vivia perto da via férrea de Boston e Maine, raras vezes ouvi silvo de um trem sem sentir o desejo de estar nele. Os apitos dos trens eram como um música encantada: as ferrovias são irresistíveis bazares, serpenteando perfeitamente nivelados qualquer que seja a paisagem, melhorando seu estado de ânimo com sua velocidade sem jamais derramar seu drinke. O trem pode inspirar segurança em lugares muito desagradáveis… Se um trem é grande e confortável, pouco importa seu destino; um assento num canto basta, e você pode ser um daqueles viajantes que permanecem em movimento, em cima dos trilhos, e nunca chegam nem sentem que precisam chegar…

E agora espera-se pelo lançamento no Brasil de outro livro de Theroux, The Old Patagonian Express: By Train Through the Americas, onde ele viaja de trem desde Boston até a Patagônia e enquanto esteve na Argentina, passa 2 dias com o escritor Jorge Luis Borges conversando sobre literatura.

Obrigado pela dica, Ben-Hur!

terça-feira, 7 de julho de 2009

MARIA FUMAÇA: LEMBRANÇAS, MEMÓRIAS


por Orlando Nascimento

“Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força...”

Sim, era preciso de muita força para alcançar os 1032 metros de altitude, conforme indicava placa de ferro fundido, visivelmente fixada na branca parede da estação de PEDREGULHO.

Sim, amigo, é bom repetir: muita força, muita lenha queimada, muita água fervida se transformando na força do vapor, fazendo sair da chaminé negra a nuvem de fumaça branca que se esparramava pelos ares até, logo, ser misturada como uma outra nuvenzinha, e muitas, mas muitas faíscas atiradas ao longo da estrada de ferro, bitola estreita, da Companhia de Estradas de Ferro da Mogiana.

Chegar tão alto exigia força, muita força e é por isso é que a Maria Fumaça chegava bufando, quase parando de cansada na pequena estação. E não era só vencer as alturas, tinha também a longa distância percorrida, pois para chegar á pequena estação de Pedregulho tinha que muito serpentear soltando seus apitos longos e roucos. Sim, coisa de mais de cem quilômetros.

- “Mas como assim?”

Sim senhor, era assim: ela, a Maria Fumaça, saía, diariamente, de Ribeirão Preto, passando pela pequena Brodósqui, depois passava e parava na estação de Batatais, pertinho da igreja com a “via crucis” toda feita com pinturas do Portinari, partia de lá e passava por Restinga, onde minha mãe se casou, para então chegar até a “Franca do Imperador”; ali, na enorme estação, parava para tomar fôlego e aproveitava para apanhar parte dos nossos professores do Ginásio e só depois seguia passando e, também parando, às vezes simplesmente sem ninguém descer ou subir, para nada, mas porque tinha que parar, em Cristais Paulista; daí só mais uma paradinha, onde ninguém podia descer, nem mesmo para necessidades urgentes, pois ali só parava para “beber água” na Chave da Taquara, a uns sete ou oito quilômetros de Pedregulho.

Mas, escuta só, não terminava ali sua viagem, se bem que ela, a Maria Fumaça e eu, certamente, ficaríamos felizes se seu descanso já iniciasse; ela para poder descansar logo e eu para poder tê-la próxima por mais tempo. Mas não era assim: logo partia de Pedregulho, ia embora, passando por Rifaina, já à beira do Rio Grande, passava por Conquista, em Minas Gerais, para chegar, aí,realmente muito cansada, exaurida mesmo, em Sacramento. E era só lá que descansava todo o fim da tarde e a noite, tomando fôlego para o retorno no dia seguinte.

A linha de trem, por onde passava a Maria Fumaça, dividia a cidade de Pedregulho. Havia o “lado de cá da linha” que era maior, onde tinha a igreja, a praça, o campo de futebol, a Santa Casa e o cemitério e o “outro lado da linha”, menor, mas grande o suficiente para formar um time de futebol do “atrás da linha” com quem o nosso time, o “do lado de cá” , jogávamos e, quase sempre, ganhávamos.

Era também na linha de trem que dividia a cidade que ocorriam as brigas, tramadas na hora do recreio no Grupo Escolar ou do Ginásio Estadual, transformando-a em nosso ringue; e era também sobre os trilhos da Mogiana que disputávamos corridas de equilíbrio “sobre os trilhos”: ganhava quem chegasse à frente sem desequilibrar o corpo dos trilhos e não colocasse os pés nos dormentes.

Mas, para precaver a Maria Fumaça dos perigos, penso eu, os trilhos que cortavam a cidade em duas eram protegidos por cercas com seis fios de arame farpado e por uma cerca de ciprestes sempre podados e cuidados pelo pessoal da estrada.

Em apenas dois ou três locais, onde a linha atravessava diretamente sobre a rua, sem cerca de arame e sem ciprestes, haviam cancelas que eram fechadas na “hora de passar o trem”; assim, as cancelas fechadas e a sirene ligada impediam que carroças, charretes, cavalos e alguns carros que trafegavam pela da cidade se chocassem com a poderosa Maria Fumaça. Então era assim, protegida de trombadas, que ela passava faceira, soltando fumaça pelas ventas, apitando forte, avisando à cidade que, soberana, havia chegado ou estava indo.
Na plataforma da estação, forrada com limpas e alvas pedras mineiras, eram descarregados os sacos com cerveja e guaraná que vinham de Ribeirão Preto e desembarcavam seus passageiros: alguns desses, esperados por parentes e amigos, ficavam se cumprimentando e se abraçando, matando saudades ali mesmo na plataforma, enquanto outros, como nossos como nossos professores, desciam rapidamente, tirando os guarda-pós que usavam para impedir que a faíscas queimassem seus ternos ou vestidos, e seguiam conversando entre eles até o Ginásio, a uns quatro quarteirões da estação, onde cumpriam a tarefa de nos ensinar.

Mas tem outra coisa que preciso contar... é que nas passagens onde os trilhos atravessavam diretamente sobre a rua havia uma placa com os dizeres: PARE, OLHE, VIVA. Estas placas, e seus dizeres, claro, por um bom tempo me confundiram.

O que ocorria é que eu lia e pensava no PARE e no OLHE como formas verbais conjugadas em seu imperativo, enquanto que, não sei porque motivo, lia e pensava o VIVA como uma interjeição expressando felicitação e alegria; aliás, eu chegava a pensar que deveria haver um ponto de exclamação logo após o VIVA. “Assim que der vou perguntar à Dona Tarcila, professora de português se não está faltando o ponto de exclamação” pensava. Mas continuando: toda vez que passava pela placa, olhava e lia com atenção e achava-a louca, meia sem sentido.

Explicando melhor, era isso o que se passava dentro de mim: “o PARE, está certo, indica a ação que eu devo parar; o OLHE, também entendo, indica que eu devo olhar antes de atravessar a rua, mas e o VIVA? Será que devo dar pulos de alegria e gritar VIVA! porque o trem não está passando?

O VIVA, para mim, tinha o mesmo sentido do HOSANA! de nossas missas. Agora e se fosse para pular e gritar VIVA!, ou mesmo berrar bem alto um HOSANA!, ficava a dúvida de a que horas deveria fazê-lo, se antes ou depois de atravessar a rua. Sei não, há alguma coisa errada nesta placa”, concluía.

Deixando isso para lá! Viagem na Maria Fumaça que mais me lembro? Foi uma que fizemos até Tambaú. Fui com minha mãe e meu pai. Viajamos “de segunda”, em bancos de madeira até a cidade do Padre Donizetti: minha mãe levou frango com farinha, Tia Voca levou requeijão e Dona Alice, nossa vizinha, levou biscoitos de polvilho; no meio do caminho as famílias trocavam as matulas e nós, crianças, ensaiávamos escondidos, pequenos abraços e beijos, nos cantinhos do vagão.

E as paisagens?

Para mim, a mais bela paisagens, a mais esperada era quando o trem voltava de Franca em direção a Pedregulho. Antes de chegar a Cristais Paulista, do alto via-se longe, bem longe, as montanhas de Minas Gerais e um orgulhoso prédio totalmente caiado de branco, isolado de tudo e de todos: era o Mosteiro dos Monges Cistercienses, que hoje em dia está bem menos solitário, já que está cercado por uma pequena comunidade, de nome Claraval.

Também não dá também esquecer, nas viagens que fazíamos até Sacramento ou Conquista, quando se passava pela Serra da Rifaina: alta, coberta de aroeiras e ipês amarelos e dela podia-se ver ao fundo o Rio Grande, cristalino, cheio de dourados, bagres, mandis, piaparas e lambaris.

Agora o que não posso deixar mesmo de contar é o que acontecia com a Maria Fumaça na festa de São Pedro, em junho, quando a Igreja Católica organizava uma grande festança.

Durante todo o mês de junho, antes da festa do dia 29, orientados por um sanfoneiro da cidade, ensaiávamos a dança da quadrilha, que com o casamento caipira, aconteceria no salão paroquial, antecedendo a reza do “terço” na igreja e a quermesse na praça.
Era uma festa esperada pela cidade.

Em seu dia um caminhão nos levava, os dançarinos da quadrilha, até a Chave da Taquara.

Lá tomávamos o trem que realizava aquela parada, como já disse, apenas para abastecer-se de água, mas naquele dia todo especial, nos recebia, fantasiados de caipira, como se não o fôssemos, como passageiros.

Lotávamos um vagão para chegarmos, gloriosos, na estação. Ao se aproximar da cidade a Maria Fumaça apitava a todo vapor, o maquinista botava mais água na fornalha para aumentar ainda mais a nuvem de fumaça, e ao barulho da Maria Fumaça e do seu apito longo, foguetes eram queimados para celebrar a chegada dos noivos e seu séqüito para o esperado casamento e dança da quadrilha...

Toda a cidade nos aguardava na plataforma da estação, de onde, ao som da bandinha da cidade e de foguetes e mais foguetes, seguíamos em carroças, todas elas e os pensativos burros vagarosamente as conduziam enfeitadas com papel crepom coloridos, em procissão até o salão paroquial.

Era lá que aconteceria o casamento, com o padre usando um balde velho e espigas de milho para jogar água benta para abençoar o povo e os noivos. Logo depois do casamento, e aí para mim era o melhor de tudo, animados pelo som da sanfona do Seu Tião, dançávamos a quadrilha.

Enquanto isso, a Maria Fumaça que não podia ficar para a festa, tinha continuado sua viagem, e àquelas horas, já devia estar descansando em Sacramento.
Era assim.

domingo, 5 de julho de 2009

O trem na memória

O trecho abaixo foi extraído da crônica de Rubem Alves - MEU DEUS, ME CURA DE SER GRANDE...que pode ser lida na íntegra clicando aqui


Antonio Morales


""Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou..."

Já sugeri que teologia é coisa que deve ser feita na cozinha. Claro que não é qualquer cozinha. Cozinha de microondas e fogão a gás não serve. Sei que é mais prático.

Fogão a lenha é coisa complicada. É preciso muita arte para acender o fogo. E é preciso cuidado para que ele não se apague. Mas que sonhos me faz sonhar um forno de microondas? Que sonhos me faz sonhar um fogão a gás?

Enquanto a Maria Alice falava eu voltava para minha casa de infância, em Minas Gerais, casa velha, forro de esteira, assoalho de tábuas largas, já meio apodrecidas, goteiras sem conta nos dias de chuva. A gente não se afligia. Isso era o normal. Telhado sem goteira era que era impensável.

E era bom ouvir os pingos da chuva batendo nas panelas e bacias espalhadas pela casa. Era do mesmo jeito, nas noites frias. Com duas diferenças: a gente
apagava a luz.

Não por economia mas para fazer a magia mais forte. No escuro os rostos refletiam as brasas, ficavam vermelhos contra o fundo negro. A imaginação ficava bêbada, as estórias mais fantásticas.

A outra é que havia sempre o apito rouco do trem-de-ferro. Vinha resfolegando, apitava na curva um gemido rouco, triste. Chamuscava a paineira velha com milhares de faiscas que saíam aos jatos, ejaculações incandescentes, e eu imaginava que assim tinham nascido as estrelas - eram faíscas de um trem-de-ferro cujo maquinista era Deus.

Fernando Pessoa era tomado por êxtases metafísicos ao contemplar o cais de pedra e os navios que partiam. Eu sinto o mesmo ao pensar no trem-de-ferro e no seu apito rouco que não mais se ouve.

"Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento" - assim foi o gemido rouco da Adélia Prado, poema-apito de trem-de-ferro..."

Rubem Alves

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O trem pagador e outras histórias


Este post foi anteriormente publicado no blog Arquivo 68. Republico aqui pois ele dá sequência ao relato O trem pagador.

Antonio Morales

trempagador.jpg



Comecei a contar sobre o trem pagador, que na década de 60, percorria os ramais da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. E como o pagamento dos ferroviários era feito diretamente no guichê do vagão estacionado em um desvio da esplanada de manobras.

A chegada do trem pagador era sempre motivo de festa e alegria pois ele trazia o esperado envelope recheado de notas, isso mesmo, dinheiro vivo, com o salário do mês dos empregados da ferrovia.

E essa alegria contagiava também as crianças, pois sempre havia a esperança de que os pais gastassem algum em guloseimas, um brinquedinho ou um gibi. O que, de fato, muitas vezes acontecia, para nossa felicidade.

Eu particularmente adorava os gibis, mas isso é uma outra história que conto em outra ocasião.

Minha alegria porém era dobrada ou quadruplicada pois meu pai era o chefe do trem pagador e volta e meia me levava junto para uma pequena viagem no trem pagador, com direito a pouso e passeio nas cidades onde o trem pernoitava.

Para um menino do interior era uma tremenda aventura, que começava no vagão pagador equipado com beliches para passarmos a noite, passava pelos cinemas das cidades de pousada e terminava no retorno à estação de origem.

E lá ia a locomotiva a vapor resfolegando pelos campos cortados pelos trilhos da ferrovia puxando um único vagão no estilo da série de TV James West, da qual muitos devem se lembrar! Muitos detalhes dessas viagens que fiz se perderam nas brumas da memória, como costumam dizer os escritores.

Mas, menino ainda, assisti a decadência das ferrovias no Brasil na década de 60, materializada na extinção dos ramais onde MEU trem pagador circulava.

Os ramais de São Carlos-SP a Novo Horizonte-SP, de Trabiju-SP a Bariri-SP e Trabiju-SP a Dourado antiga Estrada de Ferro Douradense foram extintos e os trilhos arrancados para tristeza de nossos pais ferroviários e seus filhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O trem pagador

Este post foi originalmente publicado no blog Arquivo 68, mas é muito apropriado para começar as postagens neste blog pois já anuncia um começo para os relatos de memórias.
Antonio Morales

Vejam só: eu sou do tempo em que ainda existia trem pagador. Mais que isso. Eu viajei, quando era menino, no trem pagador da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro.

Como neto e filho de ferroviários há muitas histórias da ferrovia para contar. Vou começar com essa do trem pagador que inspirou um célebre filme brasileiro – O ASSALTO AO TREM PAGADOR.

Isso foi nos idos da década de 60, mais ou menos entre 1960 e 1964,quando eu tinha entre 11 e 15 anos.

Imaginem: o trem pagador, que era composto por um carro pagador e uma locomotiva, estacionava num desvio em cada cidade para pagar o salário mensal dos ferroviários, que recebiam em dinheiro vivo, fazendo fila no guichê do pagador para receber seus envelopes. Coisa inimaginável nos dias de hoje.

O início

Conversando com amigos sobre nossas memórias ferroviárias, percebi que muitos deles as tinham e as guardavam com muito carinho, pois na maioria dos casos eram ligadas às boas lembranças.

Boas lembranças, não só porque estavam ligadas a momentos significativos e em geral prazerosos de suas vidas, mas também porque os trens tiveram seus "anos dourados" no Brasil.

O sucateamento das ferrovias foi algo marcante e a lamentar para nós que tivemos nossas vidas ligadas à época de ouro dos trens. Mais ainda para aqueles, entre nós, que cresceram à margem dos trilhos como costumo dizer, pois membros de suas famílias foram ferroviários por muitos anos.

Durante essas conversas, amigos me estimularam e incentivaram a criação deste blog, que, espero, seja um depositário dessas memórias e histórias que merecem ser partilhadas.