sábado, 11 de julho de 2009

Trens, tecnologia e cacoetes religiosos


A propósito de uma conversa sobre trens de hoje e antanho com meu amigo Juvenal Alvarenga, estávamos nos esclarecendo sobre o tal de SELETIVO, que nada mais é que um sistema de controle do tráfego de trens que hoje se faz com o apoio das novas tecnologias e o tal lacre eletrônico das locomotivas.

E aí o Juvenal saiu com o “causo” abaixo, cujos fatos ocorreram segundo ele por volta de 1955.

Antonio Morales


Trens, tecnologia e cacoetes religiosos

Esse papo de TRENS vai longe… …O “SELETIVO” era e talvez continue sendo um dispositivo de controle para que os trens não transitem simultaneamente num mesmo par de trilhos. . Nos tempos do meu amigo Ferreirinha da Noroeste essa vilância não tinha nada de “lacre eletrônico”.
Os computadores mal estariam sendo gestados no silêncio esperto da cabeça dos cientistas. O controle era feito na base do papel, lápis, gráficos, régua e transferidor. Um dia fui visitar o Ferreirinha na escala noturna do seu serviço e fiquei maravilhado com a destreza com que ele exercicia a vigilância dos trens no vai-e-vem entre as estações.

Pilotando sua mesa de engenheiro tipo cavalete o Ferreirinha – moreno, febril e ágil – de boné quebra luz sobre os olhos e o lápis preso na orelha assumia ares de anjo da guarda retendo ou liberando pelo telefone as composisões entre as estações. Um trem só partia com sua órdem expressa, depois de verificar que os trilhos estavam desimpedidos.

Isso era registrado com um vigoroso traço sobre o grande mapa da malha ferroviaria previamente desenhada e disposto sobre sua mesa de trabalho. No final de cada turno eram tantos os riscos e rabiscos que o gráfico tinha que ser trocado por outro novinho em folha.

Quando o trem paria de uma estação o fato era comicado ao “Seletivo” por telefone e o Ferreirinha fazia um círculo de onde aconteceu a partida. A seguir riscava na malha o percurso até a cidade próxima que era por sua vez assinalada da mesma forma. E assim sucessivamente.

Não tinha erro. Nenhuma outra composição poderia usar aquele percurso nem para tirar o pai da forca. Se isso acontecesse era trombada na certa. Ou um empurrão pela retaguarda de uma compoição mais lenta.

Ferreirinha foi meu colega de quarto na pensão da Dona Nenzinha. Ou seria outro o seu nome.? Foram tantos os hoteis, pensões, vagas e hospedarias onde reposuei meu corpo cansado que me dou ao direito de pequenas confusões onomásticas. Fazíamos parte, eu e ele, dos hóspedes comportados que a senhoria reunia numa parte seleta da casa.

Longe dos jogares de baralho, dos notívagos, dos cervejeiros e dos zoneiros com sua vozearia usual. Éramos a elite da escória. Estudantes, na sua maioria, mantidos pelas mesadas familiares que precisavam fazer jus aos trocados recebidos sem o labor insano. Ou, então, empregados como o Ferreirinha que precisam manter-se solerte para a próxima jornada de trabalho. Nada de vacilos boemios.

Lembro-me do Fereirinha por vários motivos, inclusive pelo bom amigo que era. E, também, por um cacoete religioso que desenvolveu – quem sabe – sem ele mesmo perceber.
A certa altura de seus solitários dias ganhou uma correntinha benta (como era de costume) e começou a homenagear o santo com um beijinho de vez em quando. Creio que de início os beijinhos eram ocasionais e esporádicos Mas sistemático como era, resolveu por ódem naquela devoção.

Passou a beijar de hora em hora, sem muito rigor matemático. Aos poucos, porém, sua religiosidade achou que era pouco e os beijos foram se adensando no correr do dia. Era raro o momento em que o Ferreira não estava com a medalhinha rente aos lábos para o exercíciodo beija-beija. .

De resto todos sabemos que as devoções do catolicismo são repetiticas e cronometradas : – as tres aves-marias, as ladaínhas, os terços… as vésperas, o ângelus…

Com seus beijos castos o Ferreirinha parecia seguir esses ritus da religião. Porém para gerar mais merecimentos deviam ocorrer cada vez mais… e mais vezes.

Nessa aritmética desvairada o meu bom amigo deve ter perdido o controle de sua devoção. O que valia não era tanto a periodicidade, mas sim a quantidade de beijos.

Uma avalanche. Quanto tocava a medalhinha com a mão, alí mesmo, tão perto no seu pescoço, lembrava-se do compromisso e com a efígie colada aos lábios descontava os beijos atrasados. Era um tuch-tuch-tuch, sonoro, solerte e incontável. Deixara de contar há muito tempo. Passara a calcular os beijos por tempo de duração do exercício piedoso.

Os períodos de repouso eram raros… bastava lembrar-se que estava em desvantagem na sua reverência que lá vinha um beija-beija frenético. Não se ocultava, não se omitia, não se escondia… era tudo às claras.

Essa passou a ser a sua marca. Pelo menos no crivo da minha observação. Pode ser até que exagero por um desses desmazelos com que o tempo guarda as lembranças. Depois nos separamos, ao comando aleatório dos caprichos do destino.


E o velhoamigo deixou da habitar minhas memórias, de onde hoje o ressuscitei para este átimo de saudades. O que a vida terá feito do Ferreirinha do Seletivo da Noroeste do Brasil, com seu beija-beija alucinado? Por onde andará o Ferreirinha?

Se vivo for se lembrará de mim como me lembro dele nesta tarde fria e silente na contemplação das águas calmas de Avaré? Quem saberá?

Juvenal Alvarenga Jr.

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