sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Memórias ferroviárias



A ferrovia foi o marco histórico em todo o Estado de São Paulo e principalmente em Bauru. Notamos, porém, que pouco se fala da ex-Companhia Paulista de Estrada de Ferro, a única com serviços prestados de primeiro mundo, pois na década de 60 e 70, embora não se tivesse tanta tecnologia, um trem fazia em 6 horas de Bauru a São Paulo com 20 paradas nas principais estações. Em determinados trechos chegava a correr 120 km/h.

Uma empresa moldada em padrões ingleses, que não aceitava erros, atrasos nos horários de partida e chegada, seriedade nas limpezas, no comportamento dos funcionários, apuração na cobrança dos acidentes quando ocorridos, exigindo rapidez. Existia rigidez quanto aos horários, tanto dos trens de cargas e principalmente dos trens de passageiros.

Um trem de passageiros corria com 12 carros (vagões de passageiros) sendo: um breque que carregava malotes até 40 toneladas, cinco carros de segunda classe (pessoas de menor poder aquisitivo), um restaurante bem equipado onde mesmo em alta velocidade um copo não se mexia nas trinta mesas existentes, quatro carros de primeira classe com poltronas reclináveis individuais e passadeiras vermelhas no corredor, e por último o carro pullman classe executiva com poltronas individuais e giratórias, este trem conduzido por uma locomotiva GE 1945, um número aproximado de 800 pessoas sentadas nas poltronas numeradas. Quatro trens partiam e quatro chegavam a Bauru dando intercâmbio com a EF Noroeste do Brasil.

A Companhia Paulista de Estrada de Ferro era dividida em regionais que por sua vez eram formadas de vários setores, como: transportes, tração, via permanente, comercial, elétrico, administração, obras, informática e tantos outros sub-setores. Todos tinham um engenheiro encarregado que por sua vez eram comandados por um engenheiro residente de pulso firme e de ótimo conhecimento ferroviário chamado superintendente.

Cada setor obedecia rigorosamente uma hierarquia, assim sendo um trabalhador braçal poderia se aposentar como chefe de setor onde ele trabalhasse logicamente fazendo os cursos internos e recebendo as notas exigidas pelo seu desempenho no trabalho. Notas estas dadas pelo seu chefe imediato todos os meses. Para ser um maquinista de passageiros demorava-se quase 15 anos passando por exames teóricos e práticos.

O ferroviário nato tinha amor pela empresa, embora não se ganhasse muito, existia compreensão e dedicação no que se fazia, pois com esforço chegaríamos ao topo da carreira escolhida. Assim vários aparelhos e ferramentas foram criados por humildes ferroviários.

Transportávamos na década de 60, 70 e 80, soja, trigo, álcool, gasolina, arroz, pequenas expedições, madeiras, óleo comestível, tijolos, animais, auto trem etc., fazíamos intercâmbio de cargas com a EF Noroeste e ainda os trens de passageiros. Tínhamos o maior parque florestal do Estado em cidades como Rio Claro, Brasília Paulista e outros lugares.

Trabalhávamos com três tipos de comando de circulação: o Staff, aparelho de comunicação entre as estações e eram comandadas pelo setor do Movimento; o Bloqueio Automático, sistema de sinalização entre as estações exemplo de Triagem Paulista para Bauru, e, o mais moderno para a época, o CTC (Controle de Tráfico Centralizado) onde o despachador, pessoa responsável pela circulação dos trens no setor do Movimento fazia os sinais através de uma máquina seletora, comandando de Bauru a Itirapina ou Araraquara a Itirapina e de Itirapina a Jundiaí. Havia comandos em Bauru, Araraquara, Campinas, e em São Paulo um centro de controle geral da circulação ferroviária.

Mas em 1976 houve a junção das cinco ferrovias: Cia. Paulista EF, EF Sorocabana, EF Mogiana, EF Araraquarense e EF São Paulo-Minas, formando a Ferrovias Paulista SA.

Os trens passaram a atrasar, pessoas que não conheciam ferrovias começaram a mandar, a seleção era feita por apadrinhamento e nos principais setores da empresa houveram faltas de elementos e materiais. A adequação era feita mandando dez funcionários trabalhadores braçais e ajustava um para o serviço burocrático com salário maior.

Assim a via permanente se deteriorou e os trens passaram a correr menos. Em quase todos os setores aconteceram esse movimento. Hoje vemos tudo sucateado, não existem mais cargos como antigamente.
O nosso governo privatizou a empresa mas não manteve os padrões de qualidade que a mesma oferecia aos usuários.

Hoje tudo que a ferrovia construiu em cem anos está entregue à iniciativa privada e sendo vendido, e os ferroviários sendo tratados como pessoas que nada fizemos pelo nosso Estado. Será que as transportadoras rodoviárias estão tristes e o nosso governo não está contente com o pedágio que recebe? E vocês acham que a ferrovia voltará a ser o que era? Nunca.

Elcio José Machado - assistente de movimento ferroviário aposentado

Publicado originalmente no Jornal da Cidade de Bauru e região em 22/10/2009

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Encontro ferroviário em Bauru - SP

Aqui em Bauru, aconteceu o 2o. Encontro Ferroviário e de Ferro Modelismo neste sábado e no domingo, dias 17 e 18 de outubro, e o prefeito prefeito e a câmara municipal assinaram o compromisso de compra do prédio da Estação ferroviária de Bauru, NOB e Paulista. Uma boa notícia, pois finalmente o prédio poderá ser restaurado.

Durante o evento, meu amigo violeiro LEVI RAMIRO lançou seu novo CD inspirado na colonização da região e, claro, nas ferrovias. Belas fotos, belas músicas, compostas e executadas pelo Levi com maestria.

Seguem as fotos que ilustram a capa e contra capa do CD e que fazem parte do encarte e fizeram parte de exposição que acompanhou o lançamento:


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O trem no Brasil...e na minha memória (2)


por Eduardo Chaves


30 de Janeiro de 2008

Ainda sobre o trem no Brasil

Recebi, a propósito de um artigo sobre "O Trem no Brasil", em meu Space, que transcrevo abaixo, mas que pode ser encontrada aqui uma mensagem de um leitor chamado Serginho, de São Paulo, que tem 43 anos e que fez, quando criança, viagens de trem entre São Paulo e Maringá. Ele tem algumas dúvidas, que gostaria de esclarecer, para poder contar aos filhos sobre a experiência gostosa que era viajar de trem por longas distâncias aqui no Brasil de alguns anos atrás.

Especificamente, ele pergunta:

1) Qual o tipo de trem que fazia esta viagem (São Paulo - Maringá)? (Por exemplo, modelo, cores dos vagões, máquina, etc.)

2) Qual o caminho percorrido? (Por exemplo, cidades onde passava e parava - sei que passava em Ourinhos)

3) Com relação ao modelo do trem pergunto porque viajei muito para o interior de São Paulo (Oswaldo Cruz) e os trens eram da Companhia Paulista/Fepasa e eram nas cores azul e creme, as máquinas eram na maioria das vezes vermelhas ou na cor azul. Partimos sempre da estação da Luz, acho que por volta das 23:00 horas.

Dei uma resposta individual a ele, mas já descobri que está incompleta. Aqui transcrevo a resposta, com os acréscimos de que me lembrei depois de enviá-la.

Caro Sérgio:

O de que realmente me lembro, no tocante à viagem de São Paulo para o Paraná, é o que disse na mensagem a que você se refere:

"As viagens que ficam mais gravadas em minha memória eram entre São Paulo (Estação Sorocabana) e Ourinhos, no famoso (e confiável) Expresso Ouro Verde. Saía da Sorocabana em São Paulo por volta das 22h (22h10, creio) e chegava a Ourinhos de manhã.

O trem era lindo -- verde, naturalmente. Íamos numa cabine leito, meus pais, meu irmão (mais novo 3 anos e 3 meses) e eu. Eu dormia no beliche de cima, como meu pai, meu irmão no beliche de baixo, com minha mãe. Isso se dava antes de eu completar sete anos.

Minha mãe levava sanduíches de presunto e queijo e um sacolinha com queijo e goiabada. Viagem de trem para mim ficou para sempre associada com sanduíches de presunto e queijo e com Romeus-e-Julietas... "

O trem e a linha, neste caso, eram da Estrada de Ferro Sorocabana, não da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Os vagões do trem eram de ferro (ou algo que se lhe assemelhasse), não de madeira, e tinham a cor verda escura, que explica o nome nome do trem: "Expresso Ouro Verde". O trajeto do Expresso Ouro Verde era entre São Paulo (Estação Sorocabana, nome oficial
Júlio Prestes) e Ourinhos.

Ele saía da Sorocabana seguindo o trajeto da linha da Sorocabana, que era o mesmo trajeto da linha de trem metropolitano que, hoje, saindo da Júlio Prestes, passa por Barra Funda, Lapa, Domingos de Moraes, Presidente Altino, etc. Osasco, Carapicuíba, Barueri, Jandira, Itapevi, etc. (não me lembro se a ordem das estações é bem essa). Depois de Itapevi passava por várias estações, como Sorocaba, e acabava em Ourinhos. A linha da Sorocabana seguia mais ou menos o trajeto da Rodovia Raposo Tavares.

Tanto quanto eu saiba, o Expresso Ouro Verde terminava seu trajeto em Ourinhos. A linha da Sorocabana, e outros trens da Sorocabana, iam até Presidente Prudente - creio que até Presidente Epitácio, na divisa com Mato Grosso. Já fui nesse trem até a divisa, no início nos anos 60. Na divisa havia um ramal que ia para o Norte, ligando com outras cidades. Não sei se
chegava a Dracena, encontrando a linha da Paulista.

De Ourinhos para frente -- quando eu era criança, na década de 40, o trem só ia até Apucarana, se bem me lembro: quando eu fazia esse trajeto Maringá era uma cidadezinha minúscula, morei lá de 1947 até 1951) -a gente baldeava para um trem bem mais vagabundo da Rede de Viação Paraná - Santa Catarina, que também tinha linha de Ourinhos para Curitiba e, acredito, dado o nome, para Florianópolis.

O trem que ia de São Paulo até Oswaldo Cruz, passando por Bauru, Marília, etc. era o da Paulista, que saía da Estação da Luz. Fiz algumas vezes esse trajeto, quando era nenê, porque nasci em Lucélia, do lado de Oswaldo Cruz.

Na verdade, o trajeto entre São Paulo e Oswaldo Cruz (indo, se não me engano, até Dracena) era feito, entre São Paulo e Jundiaí, pela Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, que tinha locomotivas vermelhas (elétricas ou a diesel).

A partir de Jundiaí começava a linha da Paulista, que ia, como disse, até Dracena (acredito). As locomotivas da Paulista, também elétricas ou a diesel, eram azuis. Por isso sua lembrança quanto à cor das locomotivas está absolutamente correta. O comboio trocava de locomotiva em Jundiaí -onde parava por cerca de 15 minutos.

Creio que, a partir da linha da Paulista em Bauru, saía uma nova linha, chamada Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que ia, se bem me lembro, até Pindorama ou Panorama, não me lembro.

A partir da linha da Paulista em Rio Claro, se não me engano, também saía a linha da Estrada de Ferro Araraquarense, que ia seguindo mais ou menos o trajeto da Rodovia Washington Luiz de hoje, passando por Araraquara, São José do Rio Preto, Fernandópolis, e indo não sei até onde.

Acho difícil que se fosse de São Paulo para Maringá de trem pela Paulista, via Bauru - a menos que se desse uma volta grande (porque acredito que deveria haver um ramal qualquer que ligasse Bauru a Ourinhos, no sentido Norte-Sul).

De Campinas saía uma linha, chamada Estrada de Ferro Mogiana, que ia para Jaguariuna, Mogi-Mirim, Mogi Guaçu, passava por Água da Prata e ia pra Minas, via Poços de Caldas, Borda da Mata, etc. Andei muito nesse trem, também, indo tanto para Poços como para Borda da Mata. Em parte dessa linha, entre Campinas e Jaguariuna, circula até hoje um trem turístico, adorado
pelas crianças, puxado por uma Maria Fumaça. Meus netos menores (Gabriela, Marcelo e Felipe, junto com a Maria Luiza, neta postiça) fizeram a viagem há pouco tempo e adoraram.

Também de Campinas, ou de Sorocaba, talvez, saía uma outra linha, chamada Ituana, que ia para Indaiatuba, Elias Fausto, Salto e Itu, etc. (se o ponto de origem fosse Sorocaba, como é mais provável, a ordem das estações se inverte). Conheço bem as estações ferroviárias dessas cidades porque tenho um sítio em Salto e circulo bastante por essas quatro cidades. Ainda há pouco passei por Cardeal, um bairro "rururbano" de Elias Fausto (fica entre Indaiatuba e Elias Fausto) e vi a estação ferroviária do lugarejo.

Em São Paulo, 29 de Janeiro de 2008

Crônica originalmente publicada aqui

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Os demônios da garôa e os trens

Trem das 11, famosa música de Adoniran Barbosa, além de ser uma bela crônica da vida dos paulistanos moradores dos subúrbios, é uma bela homenagem ao trem que ocupa papel central na vida do personagem da letra.

Os demõnios da garoa, principais intérpretes da música de Adoniran gravaram dos discos cujas capas são ilustradas com imagens de trens: uma em um LP de 1965, que leva o título de TREM DAS 11:


O outro já um CD de 2009, DEMÔNIOS DA GARÔA E CONVIDADOS, estampa uma bela foto da Estação da Luz: Fica aqui minha gratidão à Adoniran Barbosa e aos Demônios da Garôa pela grande contribuição para preservar a memória dos trens no Brasil.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O trem no Brasil...e na minha memória.

por Eduardo Chaves
2 de Agosto de 2006

O trem no Brasil

Fazia tempo que vinha procurando sites sobre a história
do trem no Brasil. O trem foi muito importante na minha
vida. Com um mês e doze dias fiz minha primeira viagem
de trem.

Nasci em 7/9/1943, em Lucélia, na chamada Alta Paulista.
Meu pai escreveu um pequeno relato de meus primeiros
dois anos. Eis o que ele diz sobre essa primeira viagem de
trem, nos dias 19-20/10/1943:

"No dia 19 de outubro tomamos a jardineira até Tupã.
O dia estava quente, mas o Oscarzinho dormiu quase o
tempo todo. Só chorava quando a jardineira parava.
Às 2 hs. da tarde chegamos a Tupã e às 3,45 tomamos
o trem.

A viagem não foi muito boa, pois o trem estava muito cheio!

Metade da viagem foi feita no carro de 2ª classe,
pois não pudemos
arranjar lugar na 1ª classe, devido ao
grande número de pessoas.

Passamos a noite com o Nenê nos braços. Ele não deu
trabalho,
pois dormiu mais ou menos bem. Às 6 hs. da
manhã chegamos
a Campinas."

Como se vê, em Outubro de 1943 a linha da Paulista parece
que chegava apenas até Tupã - não indo até Oswaldo Cruz,
Lucélia, Adamantina, Dracena.

Esta foi a primeira de muitas viagens de trem do local de
residência dos meus pais até Campinas, onde moravam minha
avó materna e minha tia, irmã de minha mãe (que faleceu faz
um mês, aos 85 anos - minha mãe faz 82 agora segunda-feira).

Meus pais se mudaram de Lucélia para Irati, no Sul do Paraná,
depois para Marialva, no Norte do Paraná, depois ainda para
Maringá, também no Norte do Paraná, e, finalmente, para Santo
André, em São Paulo, onde minha mãe e meus irmãos ainda
residem (meu pai faleceu em 1991). Viajávamos sempre de trem.

As viagens que ficam mais gravadas em minha memória eram
entre São Paulo (Estação Sorocabana) e Ourinhos, no famoso
(e confiável) Expresso Ouro Verde. Saía da Sorocabana em São
Paulo por volta das 22h (22h10, creio) e chegava a Ourinhos de
manhã. O trem era lindo -- verde, naturalmente.

Íamos numa cabine leito, meus pais, meu irmão
(mais novo 3 anos e 3 meses) e eu. Eu dormia no beliche de
cima, com meu pai, meu irmão no beliche de baixo, com minha
mãe.

Isso se dava antes de eu completar sete anos. Minha mãe
levava sanduíches de presunto e queijo e um sacolinha com
queijo e goiabada. Viagem de trem para mim ficou para sempre
associada com sanduíches de presunto e queijo e com
Romeus-e-Julietas...

Quando mudamos para Santo André, o trajeto mudou.
Pegávamos o trem subúrbio até São Paulo e lá pegávamos
o trem da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí para o interior.

Em Jundiaí a locomotiva (vermelho meio escuro) era removida e
uma locomotiva da Companhia Paulista de Estradas de Ferro
assumia - linda, linda, azul... - e o trem passava a ser conduzido
por empregados da Paulista.

Em Jundiaí o trem parava uns 15 minutos e a plataforma da
estação ficava cheia de vendedores ambulantes vendendo,
entre outras coisas, "pipóóóóóóóóóóóca". Vendiam uva e figo
também: Jundiaí é terra de uva e figo.

Campinas era um importante entrocamento ferroviário.
Além dos trilhos da Companhia Paulista passarem pela cidade,
começava ali também a linha da Companhia Mogiana, e havia
um ramal, o da Companhia Ituana, que ligava Campinas
diretamente à Estrada de Ferro Sorocabana, em Sorocaba,
passando por Itu.

Salto, onde estou agora, ainda tem sua estação -- devidamente
abandonada. Elias Fausto, aqui juntinho, também. Estive lá na
semana passada e vi fotos da estação. A estação de Itu está bem
mais conservada, mas tornou-se um Centrl Cultural, se não me
engano.

De Santo André também íamos a Santos de trem.
A cidade principal no trajeto de São Paulo para Santos era
Paranapiacaba, pequena cidade, que nunca vi sem neblina,
na beirada da serra, onde o trem começava a ser literalmente
puxado para subir a serra. Emocionante.

Alguém cometeu um crime contra o Brasil, deixando todo o nosso
enorme sistema ferroviário ser sucateado. Precisavam ser
identificados e punidos os criminosos, post mortem,
se necessário.

Por indicação do jornalista José Carlos Daltozo, de Martinópolis,
SP, que tem escrito sobre Lucélia (vide artigo recente
"Lucélia - Terra Natal", neste space), encontrei o site
Estações Ferroviárias.

Lá você pode encontrar fotos da estação ferroviária de sua
cidade, se ela teve uma. E lá encontrei referência ao site
Memória do Trem, que, por sua vez, tem vários links
relacionados.

Uma mina de informação. Ao escrever essas referências me
lembrei de que o meu caro amigo, Tonhão (Antonio Morales),
de Bauru, um dia fez referências a sites sobre ferrovias.
O pai dele foi ferroviário.

Vamos ajudar a preservar a memória do trem...

Em Salto, 2 de agosto de 2006

Crônica originalmente publicada no Blog de Eduardo Chaves


segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Trem bom demais - CENAS


por Eduardo Sposito

CENAS


1-Eu com meu avô paterno na Estação da Luz (estava inaugurando um terno branco, calça curta e paletó) em viagem para Santa Cruz das Palmeiras. Devia ter 7 ou 8 anos, 1952 ou 1953. Senti “alguém” bater no meu ombro: volto-me e não vejo ninguém. Como o peso continuasse, descobri a cagada de pomba, que tinha sido certeira no meu paletó branco, carimbado na estréia.

2-Deve ter sido o Reveillon de 60 ou 61: eu na praça da matriz em Santa Cruz das Palmeiras, esperando a meia noite, coçando as nádegas e a parte traseira das coxas: segundo o farmacêutico, uma reação alérgica ao detergente usado para limpar os bancos de madeira dos vagões da 2ª Classe, na viagem de trem que acabara de fazer. Lembro de ter escrito no meu diário: “Entrei o ano novo me coçando...”

3-A melhor viagem, em 65 ou 66, São Paulo/Bauru, viajando de “Pullman”(poltronas individuais reclináveis) com mais três colegas de seminário. Aliás... passamos a viagem na plataforma ou no restaurante.

4-A ÚLTIMA VIAGEM: com saudades disso tudo, agora em dezembro de 80, fiz a última viagem de trem do interior: São José do Rio Preto-São Paulo – trem superlotado, famílias inteiras sentadas em malas no corredor, cheiro de urina e 12 horas de viagem (de carro se fazia em 5) com direito a duas horas parados entre Jundiaí e São Paulo. Um triste adeus.

A música Último trem de Milton Nascimento narra de forma poética esse sentimento de perda que povoa nossas memórias ferroviárias.


Último trem

Milton Nascimento e Fernando Brant

Chora ó meu povo, chora meu maquinista
quem leva os trilhos mata um pouco a sua vida
pois o fim da linha é um pulo no vazio

Apaga a brasa. Vem prá casa meu foguista
esquece a lenha, a caldeira e a fumaça
que a estrada é morta, por ela nada mais passa

Nunca mais, menino, nunca mais meu povo aflito
nunca mais a gente vai ouvir o seu apito
nunca mais a gente vai sentir o seu gemido

Chora ó meu povo, que esse trem não deixa rastro
os trilhos arranca dos lugares onde passa
prá onde vai leva nossa linha

O trem derradeiro é carretel que faz novelo
os trilhos recolhe para nosso desespero
o último trem
faz chorar o povo
leva nossa linha
muda nossa vida
leva a alegria

Veja aqui vídeo com coreografia do Grupo Corpo com o instrumental de Último trem.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Trem bom demais - Segunda parada


por Eduardo Sposito


Segunda Parada:

Estação Mandaqui:

Anos 50. O acesso à periferia era feito pelos trens de subúrbio, partindo da Estação Areal, com várias linhas. Tive contato com duas delas: a do Horto/Tremembé/Cantareira que passava pelo Mandaqui, onde morei na década de 50: e a de Jaçanã/Gopouva, imortalizada pelo Adoniran, que passava próximo ao seminário onde estudei de 57 a 66.

Acho que me lembro das estações da Linha da Cantareira: Ponte Pequena(?), Santana, Santa Terezinha, Lauzane(?), Mandaqui, Invernada, Quarta Parada, Horto Florestal, Tremembé, Cantareira.

IMAGENS:

- As camisas furadas pela fagulhas que entravam pela janela da “Maria Fumaça”

- O Picoteador furando os bilhetes e o pessoal que não queria pagar fugindo, se escondendo e pulando do trem quando ele reduzia a velocidade na rua Dr.Cesar para entrar na Estação Santana. Em 55 cursava Admissão em Santana e sempre ia de trem, sozinho, aos dez anos... bons tempos!

- “Esses moleques não têm jeito!” – foi a frase que ouvi de uma senhora sentada à janela do trem que estávamos “chocando”, quando eu quase caí embaixo das rodas.

Tinha havido um descarrilamento a 500 metros da estação do Mandaqui e, para a linha continuar funcionando, o trem saía da estação e parava próximo ao acidente, trocando de passageiros com o trem que vinha da Invernada. Aí a molecada se dependurava nos estribos e curtia a viagem de graça.

- Da linha do Jaçanã me lembro que nós íamos jogar futebol num campo em Gopouva-Guarulhos. O campo ficava num buraco, cercado de um barranco por onde o trem passava dando a volta pelo campo. Me lembro que a gente parava o jogo para ver o trem passar lá em cima, tão bonito era.


- “E além disso, mulher...” Ainda tenho nos ouvidos o apito prolongado da última viagem do “Trem das Onze”: veio apitando a viagem toda. Foi muito triste.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Trem bom demais - Primeira parada

Iniciamos com este, uma série de três posts de autoria de Eduardo Sposito, amigo e colaborador. A série foi batizada de TREM BONDEMAIS e se divide em Primeira parada, Segunda parada e Cenas.

antonio morales

TREMBONDEMAIS

Quem estiver ao redor dos 60 - um pouco mais ou um pouco menos – e não tiver alguma agradável recordação de trens, não só não viveu, como não passou pela vida. (Logicamente deve ter também recordações desagradáveis, graças ao abandono a que os trens foram submetidos até sua lenta e dolorosa extinção na luta contra o Império Automobilístico, numa “via crucis” com muitas estações)

A viagem pela minha infância deve ser feita de trem.

Primeira Parada:

Santa Cruz das Palmeiras:- onde nasci e de onde minha família foi despejada para engrossar a mão-de-obra barata na capital, para o Capital, indo morar num cortiço na rua da Coroa, próximo ao local onde hoje é o Center Norte, na várzea do Tietê.

Meus pais vieram com 2 filhos pequenos, mas os avós maternos ficaram, o que ocasionava viagens anuais de trem pela Linha Paulista.

São estas as imagens que povoam minha infância:

- O acesso à Estação da Luz, até o vagão (de 2ª Classe) onde vinha escrito “Santa Cruz das Palmeiras”: a beleza da estação, a reserva de lugar colocando as malas pela janela, o tamanho das locomotivas, a emoção da partida...

- A viagem: andar pelo trem, o barulho rítmico das rodas sobre os trilhos, as Estações (acho que lembro todas: Jundiaí, Louveira, Vinhedo, Valinhos, Campinas, Sumaré, Americana, Limeira, Cordeirópolis, Araras, Leme, Pirasssununga, Laranja Azeda...Palmeiras), o vendedor de jornais (“Jornal! Revista!...” gritavam todos com o mesmo timbre; vendiam também literatura de cordel, de muito sucesso.), o vendedor ambulante de tubaina e sanduíche de mortadela (não tinha esse negócio de restaurante, que a grana não dava.)...

- A baldeação em Cordeirópolis, onde meu padrinho era funcionário da Paulista: meu pai localizava-o para conversarmos, o que sempre rendia alguns tostões para o afilhado. O medo de que meu pai tivesse ficado na estação: o trem saía e ele entrava em outro vagão para só aparecer depois da partida, assustando as crianças.

- A chegada à cidade, que o trem rodeava antes de chegar à estação, com pés enormes de mangas espada e Bourbon(a minha preferida). Para coroar a ida da estação à casa dos avós era feita de “táxi”: uma charrete enfeitada

- As cartas de minha avó escritas em italiano/português, que no envelope indicava o CEP da época: “Lígnea Paulista)

- A primeira “namorada” acenando na estação enquanto o trem voltava para São Paulo. Isso pelo final dos 40, começo dos 50... no século passado.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Rumo ao sol. De trem!


por Eli Angela

Final de ano...

A ansiedade tomava conta de nós, crianças. Meu avô (ferroviário...)reunia os netos, fazia planos.Minha avó, com seu casaco lindo, de passeio,aprontava as malas, garantia o estoque de balas e afins. Contávamos as horas, mal conseguíamos dormir, na véspera.

Nem havia amanhecido ainda e nós, saltitantes, íamos todos para a estação de trens, onde a aproximação da locomotiva fazia o coração bater mais forte de emoção .
Era imensa, enorme,meio assustadora em sua imponência.

Tomávamos nossos lugares nos bancos(eu adorava a "janelinha"- e quem não?) , começava o movimento dos vagões , tudo ficando para trás...paisagens novas, vento no rosto , sorrisos, brincadeiras - rumo ao sol, ao céu, ao mar ...de Santos!

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Trem das cores

Trem das cores, de Caetano Veloso. Uma linda canção que evoca as paisagens e cores vistas a partir da janela do trem e evocando sentimentos. Segue a letra da canção. Vejam o vídeo com a música na voz de Caetano e belas imagens. Uma singela e poética homenagem às viagens de trem de nossa memória! Clique aqui para ver o vídeo.

antonio morales

Trem Das Cores

Caetano Veloso

Composição: Caetano Veloso

A franja na encosta
Cor de laranja
Capim rosa chá
O mel desses olhos luz
Mel de cor ímpar
O ouro ainda não bem verde da serra
A prata do trem
A lua e a estrela
Anel de turquesa
Os átomos todos dançam
Madruga
Reluz neblina
Crianças cor de romã
Entram no vagão
O oliva da nuvem chumbo
Ficando
Pra trás da manhã
E a seda azul do papel
Que envolve a maçã
As casas tão verde e rosa
Que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela
E aquela num tom de azul
Quase inexistente, azul que não há
Azul que é pura memória de algum lugar
Teu cabelo preto
Explícito objeto
Castanhos lábios
Ou pra ser exato
Lábios cor de açaí
E aqui, trem das cores
Sábios projetos:
Tocar na central
E o céu de um azul
Celeste celestial


terça-feira, 25 de agosto de 2009

Sobe devagar, Maria Fumaça!


Como já relatei em post anterior viajei por três anos todos os dias no trem que subia a serra de Trabiju a Dourado-SP, no início dos anos 60. Era a única maneira que cursar o segundo grau.

Optei pela Escola Normal, pois ao contrário do Científico e Clássico,(assim se chamavam os três anos do colégio na época) oferecia profissionalização imediata. Essa escolha ligou-me para o resto da vida à coisas da educação. Tornei-me professor primário e depois fui para a Faculdade estudar Pedagogia e passei a trabalhar como professor e posteriormente me envolvi com educação profissional. Mas isso é outra história.

Feito esse longo parêntesis, voltemos ao que queria contar, sobre minhas fumegantes viagens de trem.

Como eu disse o trem em que eu viajava subia a serra puxado por uma locomotiva a vapor, que usava toda sua potência para subir um pequeno trecho de serra. Nos trechos mais íngremes, resfolegava soltanto rolos espessos de fumaça e consumindo muita lenha. Além disso consumia areia.

Areia? podem perguntar aqueles que não conhecem essas locomotivas. Sim areia, através de um dispositivo que joga a areia nos trilhos sob as rodas de ferro para evitar que o trem patine nos trechos em que os trem percorre inclinações.

Mas o mais divertido para nós adolescentes, era que o trem subia a serra muito devagar.

Tão devagar que descíamos do trem e o acompanhávamos a pé por longos trechos. Quando ele começava a pegar velocidade de novo subíamos todos de volta e continuávamos tranquilamente nossas viagens, felizes, enquanto nossa respiração voltava ao normal após o esforço da caminhada ao lado do trem!

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Olha o trem, acerte o relógio!


Quando velhos ferroviários contam que acertavam seus relógios pelo trem, muita gente pensa que estão inventando histórias e criando lendas sobre a pontualidade dos trens que hoje soa mesmo como "causos" criados pela imaginação popular.

Posso garantir a vocês que é a mais pura verdade. Houve tempo em que acértavamos os relógios pelo apito do trem quando partia da estação, passava por perto de nossa casa ou ouvíamos seu apito e pelo período do dia sabíamos qual era a hora certa.

Por muitos anos morei em casa da ferrovia quando menino e adolescente. E a nossa casa ficava ao lado dos trilhos do trem onde a Maria Fumaça passava algumas vezes por dia puxando um comboio de passageiros ou de vagões de carga.

E era bem perto da estação. Então, na minha casa todo santo dia, acontecia a mesma coisa quando o trem apitava na estação ou quando passava em frente à minha casa: quem estava na sala onde ficava o velho relógio de parede olhava automaticamente para ele para ver as horas que estava marcando. Se estivesse certo, de acordo com o apito ou barulho do trem, tudo bem. Se não, quem lá estivesse tinha a obrigação de subir na cadeira e acertar o relógio.

Muitas vezes, quando meu pai ferroviário estava em casa e na sala e eu também, ouvia seu chamado:
- Menino acerte o relógio! E lá ia eu, célere, subia na cadeira e acertava o velho relógio!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Ferroviários em greve

Sabem aquela fotografia famosa que os soldados americanos levantaram ao final da batalha contra os japoneses na ilha de Iwo Jima? Pois é.

Quando vi a foto pela primeira vez fui lançado à minhas lembranças de infância.

Explico: a primeira vez que vi uma cena parecida foi quando tinha 13 ou 15 anos, na década de 60 em uma greve de ferroviários.

Quando era declarada a greve um dos meios utilizados pelo grevistas para impedir que os trens saíssem da estação era se amontoarem sobre os trilhos e esperar que o trem viesse, pois sempre haviam os chamados fura-greves que dirigiam as locomotivas e obedeciam às ordens dos patrões.
Numa dessas vezes, um pequeno grupo de ferroviários teve a idéia de pegar a grande bandeira brasileira que normalmente era hasteada na estação e levar para o meio dos trilhos.

A grande bandeira segurada por vários ferroviários em greve tremulava ao vento sustentada por uma aglomeração de ferroviários e lá veio a locomotiva fumegando como se fosse atropelar todo mundo.

Foram momentos de tensão até a locomotiva parasse provocando uma salva de palmas e gritos de satisfação e alívio de todos. A cena então se delineou: os ferroviários segurando a enorme bandeira tremulante com a locomotiva fumaceando ao fundo!

Ah...quanta falta fez uma máquina fotográfica naquela hora. Imaginem hoje em dia: com certeza a cena seria fotografada. Com câmaras digitais ou celulares!

sábado, 1 de agosto de 2009

Os ferroviários e as lendas urbanas

LOBISOMEM NOS TRILHOS

Toda noite de lua cheia é a mesma coisa há quase um século. Começou quando ainda não havia energia elétrica na estação.Os ferroviários já sabiam o que fazer quando chegava a lua cheia.

Como na maioria das vezes ficava só um trabalhador no local, ele enchia o pátio da estação de cruzes de madeira, feito com o material retirado das cercas para espantar um lobisomem que teimava em aparecer por lá.

Quando os trens passavam, passageiros e tripulantes ficavam apavorados, pois o local parecia mal assombrado. Insistente, o lobisomem tentou entrar em casa de um dos ferroviários, no Km 17 da Noroeste, que acordou com o barulho do animal arranhando a porta.

Como não tinha arma, ele arremessou um cruxifixo na direção do bicho, que tropeçou e caiu em uma hortinha que ficava na frente da casa do trabalhador.

O lobisomem teria fugido e nunca mais voltado àquela casa. Mas ele ficou para sempre na memória daquele ferroviário. Afinal, as pimentas que estavam plantadas na horta ficaram doces como mel, em razão do bicho ter tocado nelas.

História publicada, incluindo a ilustração, no encarte Viva Bauru 113 anos, do Jornal da Cidade de Bauru e Região de 01 de agosto de 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Era uma vez um trem

Era uma vez um trem que me levava todos os dias para a escola. Esse trem com locomotiva a vapor e vagões de passageiros de madeira-igualzinho àqueles que costumamos ver em filmes de John Ford, perseguidos por índios em fúria - foi um dia a Companhia Douradense de Estradas de Ferro e depois se tornou um ramal da Cia Paulista de Estradas de Ferro que ligava minha pequena cidade natal-Trabiju-SP-a Dourado-SP.

Nos anos 60, viajei diariamente nesse trem por 03 anos para frequentar a Escola Normal(curso equivalente ao curso médio que na época formava os professores primários) em Dourado-SP.

Como apenas haviam dois trens para Dourado, o de ida as 7 horas da manhã e o de volta, ás 20 horas, minha mãe preparava uma marmita com meu almoço que eu levava e aquecia para comer na hora do almoço.

O detalhe é que nesses três anos morei da estação ferroviária onde meu pai, que era ferroviário, conseguiu com as autoridades da ferrovia, um pequeno quarto com banheiro onde colocamos uma cama, para que eu pudesse pernoitar quando preciso e uma mesa para que eu pudesse estudar e redigir minhas tarefas escolares.

Como a escola era apenas meio período convivia muito com o pessoal da estação e até aprendi a utilizar o telégrafo. Quando partia o último trem à 20 horas, a estação fechava eu ficava sozinho naquele prédio enorme, apenas contando com a presença distante de um vigia das instalações que de vez em quando se animava a conversar para espantar as assombrações, cujas histórias, confesso, me causavam, ainda, calafrios naquela solidão dos trilhos e barracões sem viva alma!

Felizmente a ferrovia durou até que eu terminasse meu curso, pois logo depois os trens pararam de circular e o apito da Maria Fumaça se calou para sempre!

quinta-feira, 23 de julho de 2009

O trem na memória...de Rubem Alves(02)

"Eu vivia na roça. Na roça todos os trem eram de pau. Pau mesmo, e não madeira. Madeira é palavra de gente da cidade. Houve a idade da pedra lascada, a idade da pedra polida, a idade dos metais. Por que não a idade do pau? Pois devia.

Dou testemunho: na roça não era nem pedra e nem metal: era pau.Na roça pau era, de fato, pau pra toda obra. Talvez essa seja a origem dessa expressão. A casa era de pau-a-pique.O fogo se fazia com paus de lenha. Tudo nos carro de boi era feito de pau (menos os bois.).

A água se bebia numa vasilha de pau chamada cuia. As cercas se faziam com um pau oco chamado bambu. E até os canos se faziam com um pau chamado embaúba. Panela, lamparina, pratos e canecas - coisas de metal eram seres de um outro mundo.

Aí aconteceu aquele dia quando o meu pai nos disse que íamos nos mudar para Lambari. E pra me explicar como era Lambari ele disse apenas: Lá tem trem-de-ferro. E foi assim que, num único dia eu dei um salto de milhares de anos.

Saí do mundo dos trem-de-pau e me mudei para o mundo do trem-de-ferro. Saí da roça. Me mudei para a civilização.(.)"

Rubem Alves

Quem quiser ler a crônica TREM integralmente é só clicar aqui

domingo, 19 de julho de 2009

O apito do trem mudou uma vida

A história abaixo foi gentilmente enviada por um leitor do blog, que garante que ela é verdadeira. Uma bela e interessante história de amor. (Antonio Morales)

por Cleyson Dellcorso

Uma imagem dos tempos de criança que não sai de minha memória é a das histórias ouvidas ao pé do fogão a lenha na casa de um tio no sul de Minas Gerais. Passaram-se muitos anos, mas uma das minhas preferidas ainda está viva em mim, tanto que quando penso no “causo” ainda sinto o aroma do café preto passado no coador de pano e do bolo quentinho de fubá.

Não era uma daquelas tantas historias de fantasmas. Esta em particular, tinha nome e sobrenome e alguns personagens moraram até há pouco nas proximidades.

A moça bonita, de casamento marcado com um ferroviário que morava em outra cidade resolveu terminar o relacionamento, afinal não tinha certeza se gostava o suficiente dele para uma vida a dois e talvez até pudesse encontrar um partido melhor, pois além de feio era pobre.

Após muito refletir, resolveu escrever uma carta terminando o noivado e para mostrar sinceridade contou com pormenores todos os seus sentimentos: que ele era feio e sem futuro e, ela bonita e que merecia alguém que lhe desse uma condição melhor de vida, que talvez até a levasse passear na Capital e não apenas entre duas estações e ainda de carona na locomotiva que era terrivelmente quente e cheirava a diesel; sem contar que da ultima vez que saíram a passeio voltara com graxa até na fita branca que usava nos cabelos negros.

Como a cerimônia do casamento seria somente no civil, não haveria muito alarde em terminar com tudo, apenas saberiam do ocorrido os poucos parentes próximos. Colocou a carta no correio utilizando um envelope florido e perfumado de sua coleção e aguardou uma resposta que nunca chegou.

Pensou até que seu ex-noivo ficara tão magoado que resolvera não responder, afinal havia escrito todos os motivos que a levaram a romper o noivado.Certa tarde estava sentada na varanda de sua casa, pensando que se não houvesse enviado aquela carta estaria casada no próximo final de semana, quando ouviu o apito do trem.

Um apito diferente do usual que só era ouvido quando seu ex-noivo era o maquinista, uma espécie de código entre eles. Ficou lívida. Estaria ele vindo pessoalmente para resolver a situação? Será que ele faria uma cena de ciúmes e atiraria nela com a velha garrucha que costumava usar sob o uniforme?

Enquanto pensava em tudo isto viu o ex-noivo acompanhado de toda a família virar a esquina de sua casa. Pensou consigo: O tempo vai fechar....O ex-noivo se aproximou, beijou-a no rosto como sempre fazia e perguntou sobre os preparativos do casamento.

A carta se extraviou, ela deduziu rapidamente.A presença de todas aquelas pessoas intimidou-a e não teve coragem de levar seu plano adiante. Seus pais certamente achariam uma maneira de contornar a situação e explicar que o casamento fora marcado novamente na mesma data e horário, afinal o numero de parentes não chegava a uma dezena.

Casaram-se. Viajaram para a cidade do noivo e passaram a primeira noite no velho Hotel da Estação, “o maior, o mais confortável” e único da cidade.O marido havia alugado uma pequena casa no fim da rua de cima, uma casinha branca com flores nas janelas de onde se avistava boa parte da região.

Numa manha de sábado, haviam passado mais de 3 meses do casamento, o casal estava regando as flores na varanda quando ela viu um funcionário da estrada de ferro vir em direção a eles, trazendo na mão um envelope florido que ela tão bem conhecia.

Sentiu seu sangue todo ir para a cabeça, a seguir uma forte tontura e o mundo girando, até que caiu desacordada.A carta extraviada que punha fim ao noivado chegara as mãos de seu quase ex-noivo e agora talvez seu ex-marido.

Aquela mesma onde ela escrevera que ele era feio e pobre e que nunca poderia ser feliz ao lado dele e que por ser jovem e bonita certamente haveria dezenas de melhores pretendentes na região. Isto alguns meses após o casamento .

Foi uma situação constrangedora onde até o velho Monsenhor teve que intervir e que só se resolveu depois que a gravidez se manifestou, porém só voltaram a se falar a caminho da maternidade, mais de 8 meses depois do ocorrido.

A última noticia que tenho deles é que viveram juntos por décadas e tiveram muitos filhos.

Ontem contei este caso para meu neto que ouviu com muita atenção e após pensar um pouco perguntou: Vovô, não seria mais fácil ela ter enviado um e-mail? Um torpedo?

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Tios na varanda...e o coração lá!


Era uma vez um jovem adolescente que deixou a vida em uma pequena cidade e se mudou para a cidade grande!

Essa é uma história muito comum por esse mundo afora. Porém o que distingue uma história da outra são os pequenos detalhes e as circunstâncias. Ocorre que essa mudança foi provocada pela extinção de ramais ferroviários no interior do Estado de São Paulo já na década de 60.

Lá estava eu naquela janela de trem, em um ano qualquer da década de 60, acenando para meus tios na varanda quando o trem que logo não iria mais existir, passou me levando e à minha família para outro lugar.

E lá estavam meus tios, como na bela música de Nelson Angelo, na voz de Milton Nascimento Fazenda, acenando e se despedindo:


Tinha sabiá, tinha laranjeira
Tinha manga-rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida

Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá

Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá


Coração apertado, lágrimas subindo aos olhos e a vontade de ficar...mas o trem seguiu em frente por aqueles trilhos que conduziram tanta gente para outros destinos e que logo mais seriam arrancados para alimentar alguma fornalha onde seriam inapelavelmente transformados à semelhança de minha vida.

terça-feira, 14 de julho de 2009

O trem na memória...de Rubem Alves

Sem querer virei personagem de uma das crônicas de Rubem Alves. Eu e todos os seus alunos da FAFI-Faculdade de Filosofia Ciências E Letras de Rio Claro, nos anos 60. Abaixo trecho de sua crônica “ Não é Próprio falar sobre alunos...” que pode ser lida integralmente aqui
Antonio Morales

“Por vários anos eu viajei diariamente de trem, de Campinas para Rio Claro, no Estado de São Paulo, onde eu era professor na antiga Faculdade de Filosofia. No mesmo vagão viajavam também muitos professores a caminho das escolas onde trabalhavam. Iam juntos, alegres e falantes...
Por anos escutei o que falavam. Falavam sempre sobre as escolas. Era ao redor delas que giravam os seus universos.Falavam sobre diretores, colegas, salários, reuniões, relatórios, férias, programas, provas.
Mas nunca, nunca mesmo, eu os ouvi falar sobre os seus alunos. Parece que nos universos em que viviam não havia alunos, embora houvesse escolas. Se não falavam sobre alunos é porque os alunos não tinham importância.”

domingo, 12 de julho de 2009

Os trens na música 01




A música brasileira está povoada de músicas e letras de músicas onde os trens são mencionados.
E, algumas delas o trem, estações, trilhos e outros aspectos do cenário ferroviário são os principais personagens ou ocupam lugar de destaque. Este post inaugura uma série com o mesmo título.

Há, particularizando um pouco mais, aquelas músicas que me lançam para algum lugar do meu próprio passado, dada a similaridade da descrição com minhas vivências pessoais. Uma delas é Encontro e Despedidas, de Milton Nascimento e Fernando Brandt, que pode ser ouvida clicando aqui .

Inúmeras vezes desde menino estive
em estações ferroviárias onde:

Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega prá ficar
Tem gente que vai
Prá nunca mais...

Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir...

sábado, 11 de julho de 2009

Trens, tecnologia e cacoetes religiosos


A propósito de uma conversa sobre trens de hoje e antanho com meu amigo Juvenal Alvarenga, estávamos nos esclarecendo sobre o tal de SELETIVO, que nada mais é que um sistema de controle do tráfego de trens que hoje se faz com o apoio das novas tecnologias e o tal lacre eletrônico das locomotivas.

E aí o Juvenal saiu com o “causo” abaixo, cujos fatos ocorreram segundo ele por volta de 1955.

Antonio Morales


Trens, tecnologia e cacoetes religiosos

Esse papo de TRENS vai longe… …O “SELETIVO” era e talvez continue sendo um dispositivo de controle para que os trens não transitem simultaneamente num mesmo par de trilhos. . Nos tempos do meu amigo Ferreirinha da Noroeste essa vilância não tinha nada de “lacre eletrônico”.
Os computadores mal estariam sendo gestados no silêncio esperto da cabeça dos cientistas. O controle era feito na base do papel, lápis, gráficos, régua e transferidor. Um dia fui visitar o Ferreirinha na escala noturna do seu serviço e fiquei maravilhado com a destreza com que ele exercicia a vigilância dos trens no vai-e-vem entre as estações.

Pilotando sua mesa de engenheiro tipo cavalete o Ferreirinha – moreno, febril e ágil – de boné quebra luz sobre os olhos e o lápis preso na orelha assumia ares de anjo da guarda retendo ou liberando pelo telefone as composisões entre as estações. Um trem só partia com sua órdem expressa, depois de verificar que os trilhos estavam desimpedidos.

Isso era registrado com um vigoroso traço sobre o grande mapa da malha ferroviaria previamente desenhada e disposto sobre sua mesa de trabalho. No final de cada turno eram tantos os riscos e rabiscos que o gráfico tinha que ser trocado por outro novinho em folha.

Quando o trem paria de uma estação o fato era comicado ao “Seletivo” por telefone e o Ferreirinha fazia um círculo de onde aconteceu a partida. A seguir riscava na malha o percurso até a cidade próxima que era por sua vez assinalada da mesma forma. E assim sucessivamente.

Não tinha erro. Nenhuma outra composição poderia usar aquele percurso nem para tirar o pai da forca. Se isso acontecesse era trombada na certa. Ou um empurrão pela retaguarda de uma compoição mais lenta.

Ferreirinha foi meu colega de quarto na pensão da Dona Nenzinha. Ou seria outro o seu nome.? Foram tantos os hoteis, pensões, vagas e hospedarias onde reposuei meu corpo cansado que me dou ao direito de pequenas confusões onomásticas. Fazíamos parte, eu e ele, dos hóspedes comportados que a senhoria reunia numa parte seleta da casa.

Longe dos jogares de baralho, dos notívagos, dos cervejeiros e dos zoneiros com sua vozearia usual. Éramos a elite da escória. Estudantes, na sua maioria, mantidos pelas mesadas familiares que precisavam fazer jus aos trocados recebidos sem o labor insano. Ou, então, empregados como o Ferreirinha que precisam manter-se solerte para a próxima jornada de trabalho. Nada de vacilos boemios.

Lembro-me do Fereirinha por vários motivos, inclusive pelo bom amigo que era. E, também, por um cacoete religioso que desenvolveu – quem sabe – sem ele mesmo perceber.
A certa altura de seus solitários dias ganhou uma correntinha benta (como era de costume) e começou a homenagear o santo com um beijinho de vez em quando. Creio que de início os beijinhos eram ocasionais e esporádicos Mas sistemático como era, resolveu por ódem naquela devoção.

Passou a beijar de hora em hora, sem muito rigor matemático. Aos poucos, porém, sua religiosidade achou que era pouco e os beijos foram se adensando no correr do dia. Era raro o momento em que o Ferreira não estava com a medalhinha rente aos lábos para o exercíciodo beija-beija. .

De resto todos sabemos que as devoções do catolicismo são repetiticas e cronometradas : – as tres aves-marias, as ladaínhas, os terços… as vésperas, o ângelus…

Com seus beijos castos o Ferreirinha parecia seguir esses ritus da religião. Porém para gerar mais merecimentos deviam ocorrer cada vez mais… e mais vezes.

Nessa aritmética desvairada o meu bom amigo deve ter perdido o controle de sua devoção. O que valia não era tanto a periodicidade, mas sim a quantidade de beijos.

Uma avalanche. Quanto tocava a medalhinha com a mão, alí mesmo, tão perto no seu pescoço, lembrava-se do compromisso e com a efígie colada aos lábios descontava os beijos atrasados. Era um tuch-tuch-tuch, sonoro, solerte e incontável. Deixara de contar há muito tempo. Passara a calcular os beijos por tempo de duração do exercício piedoso.

Os períodos de repouso eram raros… bastava lembrar-se que estava em desvantagem na sua reverência que lá vinha um beija-beija frenético. Não se ocultava, não se omitia, não se escondia… era tudo às claras.

Essa passou a ser a sua marca. Pelo menos no crivo da minha observação. Pode ser até que exagero por um desses desmazelos com que o tempo guarda as lembranças. Depois nos separamos, ao comando aleatório dos caprichos do destino.


E o velhoamigo deixou da habitar minhas memórias, de onde hoje o ressuscitei para este átimo de saudades. O que a vida terá feito do Ferreirinha do Seletivo da Noroeste do Brasil, com seu beija-beija alucinado? Por onde andará o Ferreirinha?

Se vivo for se lembrará de mim como me lembro dele nesta tarde fria e silente na contemplação das águas calmas de Avaré? Quem saberá?

Juvenal Alvarenga Jr.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Literatura de viagem...em trens!

Este post foi publicado anteriormente no blog Gato Preto.

Tudo a ver com o Trens da vida. Muito pertinente e interessante. Sua autora, consultada, gentilmente, autorizou sua reprodução aqui.


por Leila Lampe


Sou fascinada por trilhos e trens, e certa vez um amigo deu esta dica de leitura:O Grande Bazar Ferroviário - de trem pela Ásia(Objetiva).

O Grande Bazar… é um passeio delicioso! Conduzido pelos elegantes vagões do Expresso Oriente, ou pelos vagarosos trens indianos, a narrativa é pontuada por várias situações inusitadas e observações sobre os países em que o autor perpassa, como por exemplo o Vietnã, onde as marcas deixadas pela guerra contra os Estados Unidos ainda eram recentes.

Publicado originalmente em 1975, o escritor americanoPaul Theroux parte de Londres, segue pela Itália, pela antiga Iugoslávia e Bulgária até a Turquia. Atravessa o Irã, Afeganistão e Paquistão até chegar à Índia. Adentra o Extremo Oriente pela Birmânia e passa pela Tailândia, Malásia, Cingapura, Camboja e Vietnã. Viaja com os trens-bala do Japão e o final de sua jornada acontece no interminável trajeto a bordo do mítico Expresso Transiberiano, cruzando as paisagens frias e desoladas do interior dos países que faziam parte da União Soviética.

Logo no começo do livro o autor revela: “Eu procurava trens; encontrei passageiros”. Famoso por seus relatos de viagem, Theroux não é um viajante de folhetos de agência, com os clichês e estereótipos de um turista. É um observador na tradição dos grandes escritores-viajantes.

Deixo aqui um trecho do livro:

desde criança, quando vivia perto da via férrea de Boston e Maine, raras vezes ouvi silvo de um trem sem sentir o desejo de estar nele. Os apitos dos trens eram como um música encantada: as ferrovias são irresistíveis bazares, serpenteando perfeitamente nivelados qualquer que seja a paisagem, melhorando seu estado de ânimo com sua velocidade sem jamais derramar seu drinke. O trem pode inspirar segurança em lugares muito desagradáveis… Se um trem é grande e confortável, pouco importa seu destino; um assento num canto basta, e você pode ser um daqueles viajantes que permanecem em movimento, em cima dos trilhos, e nunca chegam nem sentem que precisam chegar…

E agora espera-se pelo lançamento no Brasil de outro livro de Theroux, The Old Patagonian Express: By Train Through the Americas, onde ele viaja de trem desde Boston até a Patagônia e enquanto esteve na Argentina, passa 2 dias com o escritor Jorge Luis Borges conversando sobre literatura.

Obrigado pela dica, Ben-Hur!

terça-feira, 7 de julho de 2009

MARIA FUMAÇA: LEMBRANÇAS, MEMÓRIAS


por Orlando Nascimento

“Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força...”

Sim, era preciso de muita força para alcançar os 1032 metros de altitude, conforme indicava placa de ferro fundido, visivelmente fixada na branca parede da estação de PEDREGULHO.

Sim, amigo, é bom repetir: muita força, muita lenha queimada, muita água fervida se transformando na força do vapor, fazendo sair da chaminé negra a nuvem de fumaça branca que se esparramava pelos ares até, logo, ser misturada como uma outra nuvenzinha, e muitas, mas muitas faíscas atiradas ao longo da estrada de ferro, bitola estreita, da Companhia de Estradas de Ferro da Mogiana.

Chegar tão alto exigia força, muita força e é por isso é que a Maria Fumaça chegava bufando, quase parando de cansada na pequena estação. E não era só vencer as alturas, tinha também a longa distância percorrida, pois para chegar á pequena estação de Pedregulho tinha que muito serpentear soltando seus apitos longos e roucos. Sim, coisa de mais de cem quilômetros.

- “Mas como assim?”

Sim senhor, era assim: ela, a Maria Fumaça, saía, diariamente, de Ribeirão Preto, passando pela pequena Brodósqui, depois passava e parava na estação de Batatais, pertinho da igreja com a “via crucis” toda feita com pinturas do Portinari, partia de lá e passava por Restinga, onde minha mãe se casou, para então chegar até a “Franca do Imperador”; ali, na enorme estação, parava para tomar fôlego e aproveitava para apanhar parte dos nossos professores do Ginásio e só depois seguia passando e, também parando, às vezes simplesmente sem ninguém descer ou subir, para nada, mas porque tinha que parar, em Cristais Paulista; daí só mais uma paradinha, onde ninguém podia descer, nem mesmo para necessidades urgentes, pois ali só parava para “beber água” na Chave da Taquara, a uns sete ou oito quilômetros de Pedregulho.

Mas, escuta só, não terminava ali sua viagem, se bem que ela, a Maria Fumaça e eu, certamente, ficaríamos felizes se seu descanso já iniciasse; ela para poder descansar logo e eu para poder tê-la próxima por mais tempo. Mas não era assim: logo partia de Pedregulho, ia embora, passando por Rifaina, já à beira do Rio Grande, passava por Conquista, em Minas Gerais, para chegar, aí,realmente muito cansada, exaurida mesmo, em Sacramento. E era só lá que descansava todo o fim da tarde e a noite, tomando fôlego para o retorno no dia seguinte.

A linha de trem, por onde passava a Maria Fumaça, dividia a cidade de Pedregulho. Havia o “lado de cá da linha” que era maior, onde tinha a igreja, a praça, o campo de futebol, a Santa Casa e o cemitério e o “outro lado da linha”, menor, mas grande o suficiente para formar um time de futebol do “atrás da linha” com quem o nosso time, o “do lado de cá” , jogávamos e, quase sempre, ganhávamos.

Era também na linha de trem que dividia a cidade que ocorriam as brigas, tramadas na hora do recreio no Grupo Escolar ou do Ginásio Estadual, transformando-a em nosso ringue; e era também sobre os trilhos da Mogiana que disputávamos corridas de equilíbrio “sobre os trilhos”: ganhava quem chegasse à frente sem desequilibrar o corpo dos trilhos e não colocasse os pés nos dormentes.

Mas, para precaver a Maria Fumaça dos perigos, penso eu, os trilhos que cortavam a cidade em duas eram protegidos por cercas com seis fios de arame farpado e por uma cerca de ciprestes sempre podados e cuidados pelo pessoal da estrada.

Em apenas dois ou três locais, onde a linha atravessava diretamente sobre a rua, sem cerca de arame e sem ciprestes, haviam cancelas que eram fechadas na “hora de passar o trem”; assim, as cancelas fechadas e a sirene ligada impediam que carroças, charretes, cavalos e alguns carros que trafegavam pela da cidade se chocassem com a poderosa Maria Fumaça. Então era assim, protegida de trombadas, que ela passava faceira, soltando fumaça pelas ventas, apitando forte, avisando à cidade que, soberana, havia chegado ou estava indo.
Na plataforma da estação, forrada com limpas e alvas pedras mineiras, eram descarregados os sacos com cerveja e guaraná que vinham de Ribeirão Preto e desembarcavam seus passageiros: alguns desses, esperados por parentes e amigos, ficavam se cumprimentando e se abraçando, matando saudades ali mesmo na plataforma, enquanto outros, como nossos como nossos professores, desciam rapidamente, tirando os guarda-pós que usavam para impedir que a faíscas queimassem seus ternos ou vestidos, e seguiam conversando entre eles até o Ginásio, a uns quatro quarteirões da estação, onde cumpriam a tarefa de nos ensinar.

Mas tem outra coisa que preciso contar... é que nas passagens onde os trilhos atravessavam diretamente sobre a rua havia uma placa com os dizeres: PARE, OLHE, VIVA. Estas placas, e seus dizeres, claro, por um bom tempo me confundiram.

O que ocorria é que eu lia e pensava no PARE e no OLHE como formas verbais conjugadas em seu imperativo, enquanto que, não sei porque motivo, lia e pensava o VIVA como uma interjeição expressando felicitação e alegria; aliás, eu chegava a pensar que deveria haver um ponto de exclamação logo após o VIVA. “Assim que der vou perguntar à Dona Tarcila, professora de português se não está faltando o ponto de exclamação” pensava. Mas continuando: toda vez que passava pela placa, olhava e lia com atenção e achava-a louca, meia sem sentido.

Explicando melhor, era isso o que se passava dentro de mim: “o PARE, está certo, indica a ação que eu devo parar; o OLHE, também entendo, indica que eu devo olhar antes de atravessar a rua, mas e o VIVA? Será que devo dar pulos de alegria e gritar VIVA! porque o trem não está passando?

O VIVA, para mim, tinha o mesmo sentido do HOSANA! de nossas missas. Agora e se fosse para pular e gritar VIVA!, ou mesmo berrar bem alto um HOSANA!, ficava a dúvida de a que horas deveria fazê-lo, se antes ou depois de atravessar a rua. Sei não, há alguma coisa errada nesta placa”, concluía.

Deixando isso para lá! Viagem na Maria Fumaça que mais me lembro? Foi uma que fizemos até Tambaú. Fui com minha mãe e meu pai. Viajamos “de segunda”, em bancos de madeira até a cidade do Padre Donizetti: minha mãe levou frango com farinha, Tia Voca levou requeijão e Dona Alice, nossa vizinha, levou biscoitos de polvilho; no meio do caminho as famílias trocavam as matulas e nós, crianças, ensaiávamos escondidos, pequenos abraços e beijos, nos cantinhos do vagão.

E as paisagens?

Para mim, a mais bela paisagens, a mais esperada era quando o trem voltava de Franca em direção a Pedregulho. Antes de chegar a Cristais Paulista, do alto via-se longe, bem longe, as montanhas de Minas Gerais e um orgulhoso prédio totalmente caiado de branco, isolado de tudo e de todos: era o Mosteiro dos Monges Cistercienses, que hoje em dia está bem menos solitário, já que está cercado por uma pequena comunidade, de nome Claraval.

Também não dá também esquecer, nas viagens que fazíamos até Sacramento ou Conquista, quando se passava pela Serra da Rifaina: alta, coberta de aroeiras e ipês amarelos e dela podia-se ver ao fundo o Rio Grande, cristalino, cheio de dourados, bagres, mandis, piaparas e lambaris.

Agora o que não posso deixar mesmo de contar é o que acontecia com a Maria Fumaça na festa de São Pedro, em junho, quando a Igreja Católica organizava uma grande festança.

Durante todo o mês de junho, antes da festa do dia 29, orientados por um sanfoneiro da cidade, ensaiávamos a dança da quadrilha, que com o casamento caipira, aconteceria no salão paroquial, antecedendo a reza do “terço” na igreja e a quermesse na praça.
Era uma festa esperada pela cidade.

Em seu dia um caminhão nos levava, os dançarinos da quadrilha, até a Chave da Taquara.

Lá tomávamos o trem que realizava aquela parada, como já disse, apenas para abastecer-se de água, mas naquele dia todo especial, nos recebia, fantasiados de caipira, como se não o fôssemos, como passageiros.

Lotávamos um vagão para chegarmos, gloriosos, na estação. Ao se aproximar da cidade a Maria Fumaça apitava a todo vapor, o maquinista botava mais água na fornalha para aumentar ainda mais a nuvem de fumaça, e ao barulho da Maria Fumaça e do seu apito longo, foguetes eram queimados para celebrar a chegada dos noivos e seu séqüito para o esperado casamento e dança da quadrilha...

Toda a cidade nos aguardava na plataforma da estação, de onde, ao som da bandinha da cidade e de foguetes e mais foguetes, seguíamos em carroças, todas elas e os pensativos burros vagarosamente as conduziam enfeitadas com papel crepom coloridos, em procissão até o salão paroquial.

Era lá que aconteceria o casamento, com o padre usando um balde velho e espigas de milho para jogar água benta para abençoar o povo e os noivos. Logo depois do casamento, e aí para mim era o melhor de tudo, animados pelo som da sanfona do Seu Tião, dançávamos a quadrilha.

Enquanto isso, a Maria Fumaça que não podia ficar para a festa, tinha continuado sua viagem, e àquelas horas, já devia estar descansando em Sacramento.
Era assim.

domingo, 5 de julho de 2009

O trem na memória

O trecho abaixo foi extraído da crônica de Rubem Alves - MEU DEUS, ME CURA DE SER GRANDE...que pode ser lida na íntegra clicando aqui


Antonio Morales


""Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou..."

Já sugeri que teologia é coisa que deve ser feita na cozinha. Claro que não é qualquer cozinha. Cozinha de microondas e fogão a gás não serve. Sei que é mais prático.

Fogão a lenha é coisa complicada. É preciso muita arte para acender o fogo. E é preciso cuidado para que ele não se apague. Mas que sonhos me faz sonhar um forno de microondas? Que sonhos me faz sonhar um fogão a gás?

Enquanto a Maria Alice falava eu voltava para minha casa de infância, em Minas Gerais, casa velha, forro de esteira, assoalho de tábuas largas, já meio apodrecidas, goteiras sem conta nos dias de chuva. A gente não se afligia. Isso era o normal. Telhado sem goteira era que era impensável.

E era bom ouvir os pingos da chuva batendo nas panelas e bacias espalhadas pela casa. Era do mesmo jeito, nas noites frias. Com duas diferenças: a gente
apagava a luz.

Não por economia mas para fazer a magia mais forte. No escuro os rostos refletiam as brasas, ficavam vermelhos contra o fundo negro. A imaginação ficava bêbada, as estórias mais fantásticas.

A outra é que havia sempre o apito rouco do trem-de-ferro. Vinha resfolegando, apitava na curva um gemido rouco, triste. Chamuscava a paineira velha com milhares de faiscas que saíam aos jatos, ejaculações incandescentes, e eu imaginava que assim tinham nascido as estrelas - eram faíscas de um trem-de-ferro cujo maquinista era Deus.

Fernando Pessoa era tomado por êxtases metafísicos ao contemplar o cais de pedra e os navios que partiam. Eu sinto o mesmo ao pensar no trem-de-ferro e no seu apito rouco que não mais se ouve.

"Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento" - assim foi o gemido rouco da Adélia Prado, poema-apito de trem-de-ferro..."

Rubem Alves