Tragam os trilhos de volta!


January 13, 2011
Tony Judt
                                                             Ilustração: Everett Collection
          Celia Johnson and Trevor Howard in Brief Encounter, 1945

As ferrovias estão em crise desde os anos de 1950. Sempre houve competição pelo viajante (e, embora com menor ênfase, por cargas). Carroções e diligências de 1890, com tração animal, seguidos por variações de veículos assemelhados, movidos a diesel ou eletricidade, eram mais baratos para produzir e operar que os trens. Caminhões – os sucessores de cavalos e carroções - foram sempre competitivos em percursos curtos. Com o diesel passaram a cobrir longas distâncias. Agora há aviões e, acima de tudo, carros. Os últimos foram se tornando mais baratos, mais rápidos, mais confiáveis a cada ano.

Mesmo em distâncias mais longas, para as quais foram concebidas originariamente, as ferrovias ficavam em desvantagens: investimentos iniciais e custos de manutenção - em pesquisa, construção de túneis, colocação de trilhos, construção de estações, mudança para o diesel, instalação de estrutura elétrica – eram maiores que os de meios de transporte com os quais competiam, e dificilmente todos esses investimentos se pagavam. Carros produzidos em massa, por outro lado, eram de produção barata e as estradas nas quais circulavam eram subsidiadas pelos contribuintes. É claro que traziam um alto custo social, notavelmente para o meio ambiente; mas isso só teria que ser pago no futuro. Os carros, acima de tudo, representavam, uma vez mais, a possibilidade do transporte privado. O trem, naquilo que crescentemente virou um negócio cujos administradores lutavam para ocupar número de lugares capazes de garantir o break even, era, sem dúvida, transporte público.

Ao enfrentar as barreiras atrás mencionadas, as ferrovias se viram frente a um novo desafio após a Segunda Guerra. A cidade moderna é filha dos trilhos. A possibilidade de colocar milhões de pessoas próximas umas das outras, ou transportando-as por distância considerável em percursos da casa para o trabalho e vice e versa, foi uma conquista dos trilhos. Mas, ao deslocar as pessoas do campo para a cidade, e ao drenar o interior de povoados e de gente, o trem começou a destruir sua própria razão de ser: o movimento de gente entre cidades, e de remotas regiões interioranas para centros urbanos. O principal facilitador da urbanização tornou-se vítima de si mesmo. Com a maioria das viagens muito curtas ou muito longas, fez mais sentido para as pessoas se deslocarem por meio de aviões ou carros. Ainda havia lugar para o transporte de curta distância, o trem suburbano com constantes paradas e, pelo menos na Europa, para expressos de meia distância. Mas isso era tudo. Mesmo o transporte de carga foi ameaçado por serviços baratos de caminhões, subsidiados pelo estado na forma de rodovias públicas gratuitas (freeways). Tudo o mais já fora perdido

E assim as ferrovias perderam espaço. As empresas privadas ainda existentes quebraram. Em muitos casos foram substituídas por novas companhias públicas financiadas por dinheiro do estado. Os governos trataram as ferrovias como um fardo lamentável e sem valor que pesava sobre o orçamento, restringindo investimentos de capital e cancelando linhas “não econômicas”.

A “inexorabilidade” desse processo variou de lugar para lugar. As “forças do mercado” estavam no ápice – e as ferrovias foram uma de suas vítimas – nos Estados Unidos, onde as empresas de trem reduziram a um mínimo suas ofertas nos anos de 1960. No Reino Unido, em 1964 uma comissão nacional, coordenada pelo Dr. Richard Beeching, cortou um número extraordinário de ramais e linhas rurais com a finalidade de manter a “viabilidade” econômica das Ferrovias Britânicas. Em ambos os países o resultado foi infeliz. Nos EUA as ferrovias quebradas foram “nacionalizadas” de facto nos anos de 1970. No Reino Unido, vinte anos depois, as ferrovias (estatais) foram, sem qualquer cerimônia, vendidas a preço de banana para empresas em busca de pechinchas pelas rotas mais lucrativas.

Na Europa continental, apesar de alguns fechamentos e redução de serviços, a cultura de serviço público e um crescimento mais lento no uso de carros preservaram a maior parte da infra-estrutura ferroviária. Em muitas outras partes do resto do mundo, pobreza e atraso ajudaram a preservar o trem como a única forma de comunicação de massa. Em toda parte, porém, as ferrovias – anunciadoras e emblemas de uma era de investimentos públicos e orgulho cívico - foram vítimas dupla perda de fé: na defesa de benefícios dos serviços públicos, agora substituída por considerações sobre lucratividade e competição; e na representação física de metas coletivas por meio do planejamento urbano, espaço público, e ousadia arquitetônica.

As implicações dessas mudanças podiam ser vistas, de modo mais contundente, no destino das estações. Entre 1955 e 1975 um mix de moda anti-histórica e de interesses privados via a destruição de um notável número de estações importantes – particularmente aqueles edifícios e espaços que de maneira mais ostensiva mostravam o papel central das ferrovias no mundo moderno. Em alguns casos – Euston (Londres), Gare de Midi (Bruxelas), Penn Station (Nova Iorque) – o edifício que foi demolido teve de ser substituído de uma ou outra maneira, porque a função da estação na movimentação de pessoas continuou a ser importante. Em outros casos – o da Anhalter Bahnhof em Berlim, por exemplo – a estrutura clássica simplesmente foi removida e nada foi planejado para seu lugar. Em muitas outras mudanças, a estação foi removida para um subterrâneo, deslocada do edifício visível no nível da rua – não mais servindo a qualquer objetivo de elevar sua proposta cívica – foi demolida e em seu lugar apareceu um prédio para um centro comercial anônimo, um conjunto de escritórios, ou um centro de recreação; ou todos os três simultaneamente. Penn Station – ou sua contemporânea mais próxima, a monstruosamente anônima Gare Montparnasse em Paris – é talvez o caso mais notório nessa direção.

O vandalismo urbano da era não ficou circunscrito às estações de trem, é claro, mas elas (ao lado dos serviços que costumavam fornecer, como hotéis, restaurantes e cinemas) foram de longe a vítima mais destacada. E uma vítima apropriadamente simbólica: uma relíquia dos valores modernos, desprezada, desconsiderada pelo mercado. É preciso notar, porém, que as viagens de trem não declinaram, pelo menos em quantidade: mesmo com as estações de trem perdendo seu charme e sua posição simbólica pública, o número de pessoas que as usavam continuou a crescer. Esse, obviamente, é o caso em regiões pobres e populosas onde não há alternativas realísticas para outras formas de transporte – a Índia é a melhor ilustração disso, embora não seja um exemplo isolado

Assim, apesar de baixos investimentos e um grau de promiscuidade social inter-castas, que as torna pouco atrativas para a nova classe média do país, as ferrovias e estações da Índia, assim como as de muitos países não ocidentais (China, Malásia e mesmo a Rússia européia, por exemplo), têm provavelmente um futuro assegurado. Países que não se beneficiaram do motor de combustão interna por volta da metade do século XX, uma época de combustível barato, vão sentir que o petróleo é proibitivamente caro se quiserem reproduzir a experiência americana e britânica no século XXI

O futuro das ferrovias, um tópico desagradável até pouco tempo atrás, é hoje mais que um interesse passageiro. Ele é também muito promissor. As inseguranças estéticas das décadas posteriores a Segunda Grande Guerra, o “NovoBrutalismo” que favorecia e ajudava a apressar a destruição de muitas das grandes realizações da arquitetura pública e do planejamento urbano do século XIX passou. Não ficamos mais incomodados pelos excessos do rococó, neo-gótico ou art-nouveau das grandes estações de trem da era industrial. E podemos ver muitos edifícios de modo parecido com a visão que deles tinham seus planejadores: como catedrais de sua era, a serem preservadas por suas próprias razões e pelas nossas.

Gare du Nord e Gare d’Orsay em Paris; Grand Central Station em Nova Iorque e Union Station em St. Louis; St. Pancras em Londres; Keleti Station em Budapeste; e dezenas de outras foram preservadas e melhoradas; algumas em sua função original, outras num papel de multi-uso como centros de viagem e de atividades comerciais, outras, ainda, como monumentos cívicos e marcos culturais.

Essas estações, em muitos casos, estão mais vivas e são mais importantes do que eram em qualquer ocasião por volta dos anos de 1930. É verdade que talvez elas nunca mais venham a ser reconhecidas pelo papel para o qual foram concebidas – como portais de entrada dramáticos das cidades modernas - talvez porque muitas pessoas que as usam conectam-se do metro para o trem, do ponto subterrâneo de taxi para a escada rolante, e nunca as vêem por fora ou à distância, como elas foram planejadas para ser vistas. Mas, milhões usam-nas. As cidades modernas são hoje tão grandes e tão extensas – tão populosas e caras – que as mais badaladas das velhas estações voltaram a ser utilizadas no transporte público, mesmo que apenas como nódulos de interligações. Mais do que qualquer ocasião desde os anos quarenta, nossas cidades dependem para sua sobrevivência do trem.

O preço do petróleo – efetivamente estagnado de 1950 a 1990 (desconsideradas pequenas variações em crises) – vem agora aumentando constantemente e não há chance de que volte ao nível capaz de fazer com que a viagem de carro seja economicamente viável de novo. A lógica dos subúrbios, irrefutável com o galão de gasolina a $1 dólar, está em xeque. Viagens aéreas, inevitáveis para longas distâncias, são agora inconvenientes e caras para distâncias médias. Na Europa Ocidental e no Japão o trem é a alternativa mais agradável e mais rápida. As vantagens ambientais do trem moderno são agora consideráveis, tanto técnica como politicamente. Um sistema ferroviário elétrico, assim como os sistemas de trolleys e monotrilhos na cidade, pode circular a partir de qualquer fonte combustível, convencional ou inovadora, nuclear ou solar. No futuro que se descortina, isso dá ao trem uma vantagem única sobre qualquer outra forma de transporte que dependa de energia.

Não é por acaso que investimentos estruturais públicos em ferrovias tenham crescido por toda parte na Europa Ocidental, e em muitas partes da América Latina e Ásia (as exceções incluem a África, onde tais investimentos ainda são desprezíveis, e os Estados Unidos, onde o conceito de financiamento público de qualquer natureza continua a ser penosamente pouco apreciado). Nos últimos anos os edifícios das ferrovias não mais são enterrados em subterrâneos, com sua função e identidade ingloriamente escondidas sob enormes prédios comerciais. As novas estações, financiadas com dinheiro público, em Lyon, Sevilha, Chur (Suiça), Kowloon, ou Waterloo (Londres) afirmam e celebram sua proeminência restaurada, arquitetônica e civicamente, e são cada vez mais projetos de arquitetos inovadores como Santiago Calatrava ou Rem Koolhaas.

Por que este revival imprevisto? A explicação pode ser colocada na forma de argumentos explorando fatos que podem fazer sentido: é possível imaginar (e em muitos casos hoje isso anda sendo pensado) uma política pública impondo constante redução de uso desnecessário de carros e caminhões. É possível imaginar, embora muito difícil de visualizar, o transporte aéreo tornando-se tão caro e/ou pouco atrativo que viagens não essenciais por avião irão diminuir consideravelmente. Mas simplesmente não é possível projetar qualquer economia de raiz urbana desprovida de seus metrôs, trolleys, trens urbanos, e outras soluções de transporte público que usam energia limpa.

Nós não vemos mais o mundo moderno através da imagem do trem, mas continuamos a viver num mundo construído pelos trens. Para viagens abaixo de 15 KM ou entre 200 e 700 KM, em qualquer país com uma boa rede ferroviária, os trens são alternativa mais rápida e, considerados todos os custos envolvidos, são a alternativa mais barata e menos destrutiva. O que nós pensamos ser a modernidade definitiva – o mundo pós-trilhos de carros e aviões – acabou sendo, como muitas outras coisas das décadas de 1950 a 1990, apenas um parêntesis, impelido, nesse caso, pela ilusão de um combustível perenemente barato e pelo culto da privatização que a acompanhava. As atrações de retorno a um cálculo “social” estão se tornando claras para os modernos planejadores como o eram, por razões muito diferentes, para nossos predecessores vitorianos. O que foi, por um tempo, velharia está se tornando moderno outra vez.