domingo, 16 de maio de 2010

Trens


por Luiz Ramos

publicado originalmente no blog São Paulo Minha Cidade

Moro bem pertinho da estação, e o trem faz parte do meu dia a dia como faz parte do dia a dia de todas as pessoas que moram perto de linhas férreas, utilizem-se ou não deste meio de transporte, o que acontece de diferente comigo é que eu gosto de trens.

Não desses trenzinhos mixurucas que cortam nossa cidade, mas dos trens de longos percursos. Sou fascinado por obras que os têm como tema. Músicas, como "o trenzinho caipira", filmes, como "Quanto mais quente melhor", "vidas amargas", " O expresso de Chicago" ou livros , como "O homem que via o trem passar" , "Assassinato no expresso do Oriente", etc., são, para mim, inesquecíveis, às vezes nem tanto pela história que contam, mas pelo ambiente que criam, no entanto, sendo este "Santos a Jundiaí" o trem mais próximo da minha realidade, é sobre ele que quero falar, mesmo porque, em sua humildade, ele também tem este prenúncio de tristeza que envolve o tempo de partir.

Nele as tragédias, embora não sejam cercadas de glamour, ocorrem diariamente sejam roubos, assassinatos, quedas ou então pequenas tragédias pessoais como o aviltamento de pessoas que gostam de isolamento sendo forçadas a conviver, por pouco tempo que seja, nesta intimidade deprimente, neste corpo a corpo desumano.


Há também a tragédia dos meninos abandonados que perambulam pelas estações, pelos vagões e, além do trem, pelas praças, pelas ruas de todas as cidades. Poucos os notam, muitos fingem não vê-los. São quase sempre trabalhadores. Cumprem jornadas de 12, 16, 18 horas diárias.

Comem sanduíches, frutas estragadas, restos esquecidos em balcões. Alguns roubam, só alguns, porém, todos são considerados ladrões. Vivem no olho da rua, vendem o que lhes cai na mão não importando a procedência: doces, salgados, penduricalhos, animais, flores, jornais.

Quando não há o que vender, oferecem a dignidade que lhes resta ao módico preço de "um trocadinho pelo amor de Deus". Usam os olhinhos tristes, o rostinho sujo, fazem propaganda de sua alminha judiada para enternecer o contribuinte em potencial. Crianças de melhor sorte os olham com superioridade

Nas épocas eleitorais há fartura. Ganham um dinheirinho a mais distribuindo santinhos, pichando muros. Nos comícios, ouvem discursos que prometem tanto. Apenas sorriem, nada esperam, aplaudem quem lhes paga mais. Seu divertimento é pendurar-se nos trens. Espertíssimos.

Voltando aos usuários de trem, há ainda o sofrimento dos que se iniciam neste mister. A primeira constatação é de que é impossível respirar, ou pelo menos respirar normalmente.

O expandir-se natural do tórax, ao receber o ar inalado, incomoda o vizinho. Os rostos são tensos, o clima é de velório, uma revolta latente, que raramente se concretiza, paira no ar. Vez em quando gaiatos conseguem fazer aflorar um sorriso nestas caras tão sofridas, mas são sorrisos extremamente fugazes.

A aproximação de uma nova estação é um tormento, saem 5 entram 50. A turba, como uma onda, um estouro de boiada, avança sobre os incautos que postam-se junto às portas. Quando o trem parte novamente o espaço, já tão exíguo, torna-se absurdo.

Pessoas magras, frágeis são literalmente arrancadas do piso da composição. Viajam suspensas, prensadas no ar entre corpos. Um marreteiro mais abusado tenta apregoar suas mercadorias. Desiste. É impraticável. Desconsolado, cala-se. Mulheres são encoxadas, apalpadas, olham feio. Amuam-se. Reagir contra quem se é impossível precisar quem as toca?

Na parte externa dos vagões, agarrados a lugares inimagináveis, pingentes têm seus rostos transformados, pela sujeira e opacidade dos vidros, em máscaras inumanas. Alguns sobem para o teto e, nem tão raras vezes assim, podem ser ouvidos seus gritos, seus últimos gritos.

Pelas janelas fechadas na manhã gelada, imagens tristes: Fábricas arruinadas, rios mortos, sucatas, vegetação queimada, árvores desfolhadas, carneiros sujos, galinhas de pescoço pelado, ruas, redes, fios, postes, pontes, gente com o olhar perdido, gente triste por perder o trem. Tudo passa como num sonho. As imagens correm e o trem no centro do mundo parado como as pessoas inertes que conduz, as que contém.